(da série Registros sobre registros n. 212)
Des. Ricardo Dip
841. O termo constituição de direitos compreende-se de dois modos: um, em sentido restrito, como surgimento inaugural (ex novo) de direitos que antes disso não existiam (p.ex., a constituição de um domínio sobre res nullius); outro, em acepção menos própria, ao modificar-se a titularidade de um direito (g., a aquisição dominial de um imóvel, por meio do contrato de compra e venda); este segundo modo é o da aquisição derivada de direitos (cf. Domingues de Andrade).
Parece melhor considerar que a constituição do usufruto se classifique no âmbito do primeiro desses modos (ou seja, em sentido restrito), porque se trata de um direito ex novo –ainda que derivado de outro direito (o de propriedade): o usus e o fructus já existiam na unidade jurídica do domínio, mas, ao destacarem-se dessa unidade (por força da elasticidade dominial), dão origem a um direito novo, constituem-no stricto sensu. Bem por isso o usufruto deducto exige a inscrição do direito real menor no ofício imobiliário.
842. Interessa neste capítulo, por primeiro, examinar a constituição do usufruto imobiliário convencional (uma constituição de caráter derivado de domínio anterior), usufruto que, reiteremos, no direito brasileiro posto, é o usufruto instituído por meio de atos voluntários, quer atos inter vivos (contratos), quer atos causa mortis (testamentos) –vidē item 832, retro.
Não aparenta demasiado dizer, à partida, por mais trivial se entenda isto, que a constituição do usufruto voluntário se dá, necessária e simultaneamente, ao tempo de sua aquisição pelo credor usufrutuário; ou seja, sem a constituição (que não se confunde com a mera instituição) não se caracteriza a aquisição do usufruto.
Nesse quadro, os contratos e os testamentos são títulos propriamente institutivos do usufruto predial, com isso querendo significar-se que os títulos são apenas a potência ou a matéria para que, mediando uma atualização (rectius: passagem ao ato) ou, por diverso ângulo, havendo a determinação da matéria pela forma, venha a constituir-se o usufruto. Em outros termos, os títulos são a causa material do usufruto sobre imóveis; mas para que esse usufruto se constitua (é dizer, atualize-se, movimente-se desde a potência para existir em ato), exige-se o concurso de uma causa formal, determinante ou individuante da matéria, e essa causa formal é o registro. Assim o disse Carlos Roberto Gonçalves: “O negócio jurídico em si não basta, todavia, para constituir o usufruto. De fato, quando este tiver por objeto um imóvel, a sua aquisição por atos entre vivos se dará com o registro do título aquisitivo no Cartório de Registo de Imóveis (…)”.
Lê-se, com efeito, no art. 1.227 do vigente Código civil brasileiro: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código”; e, especificamente quanto ao usufruto, que este, referindo-se a imóveis, “quando não resulte de usucapião, constituir-se-á mediante registro no Cartório de Registro de Imóveis” (art. 1.391).
Anteriormente ao Código civil nacional de 1916, a constituição do usufruto predial por meio de testamento não exigia seu registro no ofício imobiliário. Nesse sentido, lê-se na valiosa obra do Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira: “A disposição testamentária opera por força própria, independentemente de fato posterior à constituição real do usufruto” (Direito das coisas, § 95).
Com o art. 715 do Código de 1916 –“O usufruto de imóveis, quando não resulte do direito de família, dependerá de transcrição no respectivo registro”–, tem-se que a inscrição do título “abrange não somente o usufruto constituído por ato entre vivos, mas também o que for por testamento” (Carvalho Santos). Na mesma linha, disse Clóvis Beviláqua: “O código estabelece uma regra geral, que abrange tanto o usufruto constituído por testamento, quanto o constituído por ato entre vivos, quando exige o registro”.
E a previsão quer do Código civil de 1916, quer do Código atual, de 2002, replica-se na vigente Lei nacional de registros públicos, nela se dispondo caber o registro stricto sensu “do usufruto e do uso sobre imóveis e da habitação, quando não resultarem do direito de família” (item 7º do inc. I do art. 167), de sorte que a exceção extrarregistral aí indicada é apenas a de sua proveniência do direito de família, é dizer, a do usufruto legal.
No direito argentino, embora não se exija a constituição do usufruto de imóvel por meio do registro de seu contrato institutivo, reclama-se, em lugar do modo registral (que é substituinte da tradição fenomênica), a tradição efetiva da coisa usufruída. Lê-se, na primeira parte do art. 2.820 do Código civil argentino: “El usufructo que se estabelece por contrato, sólo se adquiere como el dominio de las cosas por la tradición de ellas (…)”. Quanto ao usufruto objeto, porém, de disposição testamentária, o direito argentino tem-se por então constituído pela só “muerte del testador” (parte final do mesmo art. 2.820).
843. À exceção prevista na Lei brasileira de registros públicos quanto à constituição do usufruto imobiliário com dispensa da inscrição –vale dizer, o usufruto oriundo do direito de família– deve ainda agregar-se a hipótese de o usufruto constituir-se por meio de usucapião (cf. art. 1.391 do Código civil de 2002).
Tanto cabe essa aquisição prescricional pela espécie extraordinária, quanto pela ordinária, assim já o observara o Conselheiro Lafayette (op.cit., § 95-III), a que concorre o abono da autoridade de Benedito Silvério Ribeiro em seu valioso Tratado de usucapião (item 123), correspondendo a usucapião ordinária do usufruto à sua constituição a non domino, presente o registro do justo título, registro sem o qual não se poderia reconhecer o justo título necessário para essa espécie prescricional. Pode mesmo dizer-se, porém, que, em geral, a prescrição do usufruto caracteriza-se por ser sempre efetivamente contra dominum: “O usufruto comumente adquire-se pela prescrição quando o objeto sobre que recai não pertence àquele que o constitui” (Silvério Ribeiro).
Saliente-se, contudo, que uma coisa é dizer que o usufruto adquirido por meio de usucapião não exige o registro para constituir-se. É dizer, ele, o usufruto, constitui-se juridicamente com a efetividade dos supostos da aquisição prescricional, independentemente do ato de registro. Mas isso não significa recusar-lhe o registro com efeitos declarativos, como é exigível de toda usucapião (cf. arts. 167, inc. I, item 28, e 169 da Lei brasileira 6.015, de 1973).
Cabe considerar, por fim, a possibilidade de reconhecer-se em via extrajudicial a usucapião de usufruto, diante do que dispõe o art. 216-A da Lei brasileira de registros públicos (regra incluída pelo Código de processo civil de 2015, em seu art. 1.071).
Todas as espécies e subespécies de usucapião no direito brasileiro atual, a saber, a usucapião ordinária, a extraordinária, a especial rural e urbana, a indígena, a coletiva, a familiar −e, ladeada a discussão sobre sua existência no direito brasileiro atual, a usucapio secundum tabulam (arts. 1.242 do Cód.civ. de 2002 e 214, § 5º, da Lei 6.015/1973), todas essas várias espécies e subespécies da usucapião aparenta poderem processar-se no âmbito do extrajudicial, a despeito de o caput do art. 216-A da Lei 6.015 apenas referir-se, para fins competenciais, à situação do imóvel usucapiendo. Calha que admitir a usucapião do todo jurídico (o domínio) e não admitir a de seus desdobramentos (direitos reais menores) não parece forrar-se de razoabilidade.