Da Penhora de Bens e da Inscrição das Medidas Constritivas

(da série Registros sobre registros n. 195)

                                                 Des. Ricardo Dip

794. Medidas de constrição de bens, o arresto, o sequestro e a penhora agrupam-se num só e mesmo dispositivo específico da vigente Lei brasileira de registros públicos (cf. o item 5º do inc. I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973).

O critério que terá levado a este agrupamento parece ter sido, materialmente, o de essas medidas serem todas de constrangimento de bens, e, formalmente, o de, segundo a Lei 6.015, darem ensejo a registro stricto sensu (disposição que, mal ou bem, bem ou mal, foi alterada já pelo Código de processo civil brasileiro de 1973: art. 615-A e § 4º do art. 659).

Diversificam-se, contudo, essas três medidas –e isto já o deixamos dito um tanto–, em que, numa primeira aproximação (bastante para o presente capítulo), duas delas, o arresto e o sequestro, têm caráter preventivo, preparatório, ao passo que a penhora possui natureza satisfativa ou executória, regredindo àqueles sua limitação, exatamente pelo fim preparatório a que visam o arresto e o sequestro, de sorte que não podem estes afligir bens impenhoráveis (assim, para o que releva em nossos estudos, o inc. I do art. 830 do Cód.pr.civ. enuncia serem impenhoráveis “os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução”, pondo-se a salvo que “a impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição” – §1º do mesmo art. 830).

Aqueles, o arresto e o sequestro, previnem a eficácia da satisfação de um crédito na via executória. Quer o façam em via de tutela cautelar preparatória, quer em caráter intercorrente, até mesmo de modo incidental à execução (assim, lê-se no caput do art. 830 de nosso atual Cód.pr.civ.: “Se o oficial de justiça não encontrar o executado, arrestar-lhe-á tantos bens quantos bastem para garantir a execução”), essas medidas preventivas têm potencialidade para converterem-se na medida satisfativa de penhora; tal o indica o § 3º do mesmo art. 830 Código de processo civil brasileiro, tratando da execução por quantia certa: “Aperfeiçoada a citação e transcorrido o prazo de pagamento, o arresto converter-se-á em penhora, independentemente de termo”.

Em geral, efetiva-se a penhora por meio de oficial de justiça, em cumprimento de mandado; isto o dispõe o art. 154 do Código de processo civil de 2015: “Incumbe ao oficial de justiça: I - fazer pessoalmente citações, prisões, penhoras, arrestos e demais diligências próprias do seu ofício, sempre que possível na presença de 2 (duas) testemunhas, certificando no mandado o ocorrido, com menção ao lugar, ao dia e à hora” (vidē ainda o § 3º do art. 523 do mesmo Código, em que há referência ao “mandado de penhora”). Pode, entretanto, perfazer-se também por auto (quando concirna a penhora por meio eletrônico: art. 838 do Cód.pr.civ.) ou termo (que, além de admitir-se na penhora por eletrônico, é o modo adequado já para a penhora de bens a tanto nomeados, incluídos os em substituição: “Sempre que ocorrer a substituição dos bens inicialmente penhorados, será lavrado novo termo” –art. 849 do Cód.pr.civ.–, já de conformidade com o disposto no § 1º do art. 845: “A penhora de imóveis, independentemente de onde se localizem, quando apresentada certidão da respectiva matrícula, e a penhora de veículos automotores, quando apresentada certidão que ateste a sua existência, serão realizadas por termo nos autos”).

795. Assim, os títulos formais expressamente idôneos para a inscrição imobiliária das penhoras efetivadas são, remotamente, o auto, o mandado ou o termo da penhora, e, ordinária e proximamente, a certidão desses títulos, admitindo-se ainda que se apresente mandado específico já não directe da penhora, mas ordenando-lhe a inscrição (cf. art. 239 da Lei 6.015: “As penhoras, arrestos e sequestros de imóveis serão registrados depois de pagas as custas do registro pela parte interessada, em cumprimento de mandado ou à vista de certidão do escrivão, de que constem, além dos requisitos exigidos para o registro, os nomes do juiz, do depositário, das partes e a natureza do processo).

Controversa, neste capítulo, é a inscrição de uma penhora desacompanhada de  termo específico, quando, por decurso do prazo legal do pagamento, nela se haja convertido, ipso facto, o arresto (§ 3º do art. 830 do Cód.pr.civ.); nesta hipótese, parece que a certidão do mandado relativo ao mesmo arresto efetivado, acompanhando-se do título acessório consistente na certidão do transcurso do prazo para o pagamento do débito objeto, dará fundamento para a inscrição da penhora.

Mas, além  da penhora efetivada, pode ser levada à inscrição imobiliária a penhora potencial –a indicação de suscetibilidade de penhorar-se um imóvel; diz, com efeito, o art. 828 do Código de processo civil brasileiro: “O exequente poderá obter certidão de que a execução foi admitida pelo juiz, com identificação das partes e do valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou indisponibilidade” (o itálico não é do original). Atualizada –ou seja, efetivada– que venha a ser a penhora, devem cancelar-se, então, as averbações relativas aos imóveis não constrangidos (§ 2º do art. 828), admitindo-se que o juiz atue ex officio para determinar os cancelamentos (§ 3º do art. 828). Essa inscrição da penhora potencial –que o Código prevê se faça por meio de averbamento– tem o efeito de presumir-se fraudatória da execução “a alienação ou a oneração de bens efetuada após a averbação” (§ 4º do art. 828), acautelando-se o excesso da pretensão dos credores mediante a possibilidade de incidental indenização do devedor: “O exequente que promover averbação manifestamente indevida ou não cancelar as averbações nos termos do § 2º indenizará a parte contrária, processando-se o incidente em autos apartados” (§ 5º do art. 528).

796. É fato que, desde a vigência da Lei 11.382/2006 (de 6-12), que, modificando o Código de processo civil de 1973, previu expressamente a averbação imobiliária da penhora, esta foi a modalidade preferida de fato, mas não sempre, na praxis registral.

Na verdade, duas anteriores mudanças pontuais no mesmo Código de 1973 haviam, sucessivamente, no § 4º de seu art. 659, usado a palavra inscrição (com o texto da Lei 8.953, de 13-12-1994), e, substituindo-a a Lei 10.444/2002 (de 7-5), o vocábulo registro. A Lei 11.382 usou o termo averbação: “A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de penhora, cabendo ao exequente, sem prejuízo da imediata intimação do executado (art. 652, § 4º), providenciar, para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, a respectiva averbação no ofício imobiliário, mediante a apresentação de certidão de inteiro teor do ato, independentemente de mandado judicial”. No mesmo sentido, o averbamento foi o modo indicado no art. 615-A desse Código de 1973, com a Lei 11.382, para a inscrição da penhora potencial, autorizando-se ainda que os tribunais expedissem “instruções sobre o cumprimento deste artigo” (§ 5º do art. 615-A), tendendo a praxe, com exceções embora, a reconhecer a prevalência das novas regras do Código de processo civil (de 1973) ante a previsão, na Lei 6.015, do registro stricto sensu da penhora.

Ainda não é uníssona a adoção, entre nós, do averbamento da penhora, bastando ver que não falta sequer alguma expressa previsão judicial-administrativa de a penhora ser objeto de registro em acepção estrita.

O reiterado uso do vocábulo averbação e ainda da palavra averbado no Código de processo civil brasileiro de 2015 –uso que aparece sete vezes em seu art. 828 e manifesta-se ainda   nos arts. 791, § 1º, 792, incisos I a III, 799, inciso IX, 837, 844, 860, 868, §§ 1º e 2º, e 889, inciso V–, parece solver a disputa sobre o modo inscritivo da penhora, nos termos da norma do § 1º do art. 2º de nosso Decreto-lei 4.657/1942 (de 4-9): “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Enfim, lex posterior derogat priori, considerando-se que tanto o Código processual em vigor, quanto a Lei 6.015, são normas de mesmo grau ordinário, e o Código tratou inteiramente da matéria relativa à inscrição da penhora. Não é demais invocar, neste passo, a lição de Oscar Tenório, para quem a regra do § 2º do art. 2º do mencionado Decreto-lei 4.657 –dispondo: “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”– não se aplica “quando a lei nova, nos termos do § 1º [desse mesmo art. 2º], regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

Parecendo melhor, pois, a interpretação que beneficia a prática atual do averbamento da penhora –por mais que lhe conviesse, doutrinariamente, o registro em sentido estrito–, resta, no entanto, indagar sobre o modo de inscrição da medida de sequestro: deve este averbar-se ou registrar-se?