Das Servidões em Geral

(da série Registros sobre registros n. 197)

                                                 Des. Ricardo Dip

801. A Lei brasileira 6.015, de 1973, inclui o que designou servidões em geral no campo dos títulos registráveis stricto sensu (item 6º do inc. I do art. 176).

Para logo, a expressão “em geral” usada no texto da lei, embora tenha sentido suficientemente útil a legitimá-la, tal se verá adiante, não parecerá inteiramente apropriada se considerarmos as servidões pessoais admissíveis no direito vigente –também ditas servidões irregulares–, porque estas, suscetíveis de registro em sentido estrito, possuem, no entanto, diverso e explícito fundamento legal (vidē item 7º do inc. I do mesmo art. 176).

802. Pode conceituar-se servidão, em acepção própria, o direito real em que o proprietário de um imóvel consente, voluntariamente, ou tolera, por título compulsivo, sirva este imóvel, de maneira limitada, a outro prédio, relativamente vizinho, com dada permanência. Em fórmula concisa –mas um tanto deficiente–, disse o Conselheiro Lafayette que a servidão é “o direito real constituído em favor de um prédio (o dominante) sobre outro prédio pertencente a dono diverso (o serviente). O prédio que serve é chamado serviente; o que é servido, dominante”.

Assinalável, de logo, é a circunstância de que o conceito de servidão stricto sensu é exatamente o da servidão predial ou imobiliária (ius prædiorum), ainda que possa aventar-se a possibilidade rara de servidão relativa a bem móvel.  As outras servidões –ou seja, as que não são servitutes reales– são denominadas servidões por extensão, servidões impróprias, irregulares, pessoais (servitutes personales: usufruto, uso, habitação, e, outrora, as obras dos escravos alheios ou de animais de outrem –operæ servorum et animalium: cf., a propósito, por todos, Pietro Bonfante e Jörs-Kunkel). Entre ambas salienta-se a diferença que as servidões reais gravam e beneficiam, de maneira direta, os próprios imóveis relacionados, vale dizer: há uma inerência do direito aos imóveis afetados, pouco ou nada importando quais sejam seus titulares; ao passo em que as servidões impróprias correspondem, de modo direto, a uma pessoa –“individualmente determinada” (Enneccerus-Kipp-Wolff)–, para cujo favor se destina a servidão.

803. As servidões voluntárias chamam-se convencionais –estas não só, porém, as que, por mais frequentes, pactuam entre si os donos dos imóveis dominante e serviente, senão que também as constituídas por testamento, de maneira que o adjetivo “convencional” designa esse conjunto por metonímia, dada a similitude dos títulos institutivos, sobretudo por adversarem a origem compulsória das servidões legais. Todavia, Lafayette incluiu no âmbito das convencionais a servidão adquirida por meio de prescrição.

No conceito de servidões legais compreendem-se não apenas as diretamente resultantes de lei, mas também as que derivam da realidade das coisas (da natura rerum: p.ex., a do escoamento das águas que fluam de um imóvel mais elevado a outro inferior; são as servidões naturais) e as que, de direito público, são impostas por utilidade comunitária pública: são as servidões administrativas (tema que se examinará adiante).

Encontram-se no Código civil brasileiro vigente indicações expressas quer de servidões legais (stricto sensu), quer de naturais, no capítulo dos direitos de vizinhança: assim, seus arts. 1.285, 1.286. 1.290 e 1.292 referem-se à servidão de trânsito ou passagem forçada, o art. 1.291 versa a servidão de águas supérfluas, o art. 1.288 trata da servidão natural de escoamento de água, e o art. 1.301 cuida da servidão negativa de janelas e frestas. Ao lado dessas, porém, tantas outras haverá, inúmeras, quantas se mostrem necessárias ao uso regular dos bens imóveis; conhecida, a propósito, é o elenco que delas fez Washington de Barros Monteiro, alistando quase duas dezenas, entre as urbanas e as rústicas. Essa quantidade bem explica o uso da expressão “servidões em geral” na Lei 6.015.

Note-se que, prevendo a Lei 6.015 o registro das servidões em geral, não desandou da inscrição de algumas servidões legais, incluindo as administrativas. Calha, contudo, que o momento constitutivo das servidões convencionais demanda o registro, o que não se exige quanto às servidões legais. Com efeito, lê-se no art. 1.378 do Código civil brasileiro de 2002 que a servidão se constitui “mediante declaração expressa dos proprietários, ou por testamento, e subsequente registro no Cartório de Registro de Imóveis”.

Já o Conselheiro Lafayette havia observado, a propósito especificamente da servidão de passagem de águas (aquæductus), que ela não resultava imediatamente da lei, constituindo-se, efetivamente, “por autoridade do juiz, a requerimento do senhor do prédio dominante, mediante certas diligências”.

Embora, pois, siga a tratar-se de uma servidão ex vi legis, exatamente por não derivar da lei, diretamente, é que se justifica seu registro. Diferentemente, a inscrição das servidões naturais não parece autorizar-se, a despeito de o texto da vigente lei brasileira de registros públicos reportar-se, como visto, às servidões em geral.

804. Quanto às servidões administrativas, participam elas do gênero das servidões legais, mas com o caráter de instituto de direito público. Por isto, dizem-se também servidões públicas ou servidões de direito público. O instituto não se versou no Código civil de 1916, vindo a contemplar-se no Código brasileiro de Águas (Decreto 24.643, de 10-7-1934: art. 151) e, na sequência, em vários outros diplomas legais (p.ex., Código de Mineração: Decreto-lei 227, de 29-2-1967; Decreto-lei 3.236, de 7-5-1941; Lei 9.074, de 7-7-1995); sua previsão legal genérica, no entanto, está no art. 40 do Decreto-lei 3.365/1941 (de 21-6), que é a Lei geral de desapropriações.

Constituem-se as servidões administrativas por ato da administração pública ou de entidade delegada (cf. art. 6º do Decreto brasileiro 35.581, de 16-7-1954), sem depender do consentimento do particular –e é por isto que pode classificar-se no âmbito das servidões legais, em contraste com as servidões convencionais–, e distinguem-se ainda de todas as demais servidões por as administrativas não exigirem que o imóvel serviente se relacione com um prédio dominante: nada impede, com efeito, que a administração pública ou seus delegados se sirvam permanentemente de imóvel de particular, sem que haja referência a prédio dominante (ilustração muito comum é a servidão de passagem de fios de eletricidade).

Não se exclui a indenização que caiba ao particular, pois não pode alguém padecer, sem reparação, sacrifício anômalo em benefício do todo: diversamente do que ocorre com as limitações administrativas –que são imposições gerais (p.ex., a impossibilidade de edificar além de certa altura)–, as servidões de direito público recaem sobre um imóvel determinado de propriedade privada, de que segue ser indenizável o prejuízo suportado pelo dono deste prédio: “O expropriante poderá constituir servidões, mediante indenização na forma desta lei” (art. 40 do Dec.-lei 3.365; sublinhe-se a notória impropriedade no uso do termo “expropriante”, porque a servidão não implica desapropriação alguma).

O registro predial da servidão administrativa demanda ou a concordância do titular do imóvel serviente ou decisão judicial que a constitua. São títulos para o registro da servidão pública (i) o instrumento de possíveis acordos, na via burocrática, com os proprietários dos imóveis afligidos, e (ii) a carta de sentença judicial, extraída nos processos instituintes das servidões administrativas, processos esses que se submetem à disciplina referente à desapropriação (art. 40 da Lei geral das desapropriações), ou ainda em processos judiciais relativos a prescrição aquisitiva.