(da série Registros sobre registros n. 198)
Des. Ricardo Dip
805. Já referidos os títulos suscetíveis de registro quanto às servidões administrativas, cabe considerar agora os títulos destinados ao registro das demais servidões.
Antes, contudo, calha aqui um breve excurso pra salientar, ainda quanto à servidão administrativa, a necessidade, sem embargo de sua regência pelo direito público, de observância dos requisitos para o registro. A matéria, por evidente, é de relevo no campo da qualificação dos títulos pelo registrador.
A este propósito, constou de julgado do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, empolgando tema relativo à determinação objetiva e a à especialidade de lugar de uma servidão:
“Dúvida registral não é consulta. É dissenso em concreto acerca da inscrição imobiliária de uma causa jurídica ou título material que deve veicular-se por meio de um documento (ou título em acepção formal).
Sem que o Judiciário conheça desse documento −que não se trouxe aos autos−, inviável é que trate de solver o dissenso correspondente.
(…) Para mais, se isso já não bastara, calha que não há referência aos lugares, supõe-se, a servidão cujo registro se persegue, sem suficiente irresignação quanto ao ponto.
Sublinhe-se, neste passo, a indicação do plural: lugares.
É que são quatro os possíveis lugares referenciáveis a uma servidão: lugar-ubi, lugar-unde, lugar-quō e lugar-quā.
Tal se disse em outra parte, «é avistável a muito maior importância, teórica e prática, que se deve reconhecer ao tema do lugar-ubi no registro de imóveis, mas −ainda que redutíveis à sindicância do lugar-ubi−, as demais apontadas espécies correspondem, algumas vezes, a indagações rotineiras na praxis registral».
Lugar-ubi define-se a parcela do espaço onde está um dado corpo; trata-se, pois, do objeto de conceito ou conteúdo daquilo que se busca saber ou que se responde em face do advérbio onde (ubi servitium est?).
Lugar-unde é a fração do espaço de onde (de + onde) provém algo, donde procede, donde resulta, de onde parte ou começa cēt. (unde servitium incipit? −onde começa a servidão, de onde ela parte).
Se, todavia, postamo-nos no ponto em que começa o traçado físico de uma dada servidão, podemos ainda indagar: aonde vai esta servidão de passagem? (quō it servitium?). E agora o de que tratamos é do lugar-quō, vale dizer, a parte do espaço aonde ou para onde se dirige, orienta ou ordena um corpo.
Também, ao fim, interessa saber por onde passa, em dado imóvel, a servidão que o afete. Este “por onde” corresponde ao conteúdo de um lugar-quā, é dizer, a parcela de um espaço por onde passa um determinado corpo; se uma estrada corta um imóvel rural, tem-se de saber por onde −quā− passa essa estrada. Se uma servidão de passagem atinge um prédio, temos de aferir por onde ela passa (quase sempre isto se reduz ao locus-ubi, mas são lugares categoriais distintos).
Assim, todas essas espécies de lugar (loci ubi, unde, quō quāque) correspondem a frações do espaço que podem ser ocupadas ou estão de fato ocupadas por um dado corpo, de sorte que, tratando-se de uma servidão que afete uma porção imobiliária, estes lugares devem esclarecer-se para a regularidade tabular” (AC 1000096-45.2015 -declaração post disceptationem de voto de vencedor).
806. Podem dar amparo à constituição de servidões títulos sejam inter vivos, sejam mortis causa, mas quanto a estes últimos o vigente Código civil brasileiro indica, de maneira expressa, apenas o testamento: “A servidão proporciona utilidade para o prédio dominante, e grava o prédio serviente, que pertence a diverso dono, e constitui-se mediante declaração expressa dos proprietários, ou por testamento, e subsequente registro no Cartório de Registro de Imóveis” (art. 1.378). Em comentário ao art. 697 do Código civil nacional anterior, Clóvis Beviláqua dizia poderem constituir-se as servidões “por ato entre vivos, por disposição de última vontade, ou por usucapião”, sem distinguir, pois, as espécies quanto aos títulos causa mortis, certo que os arts. 695 e seguintes desse Código de 1916 não previu, explicitamente, quais títulos poderiam instituir a servidão. Carvalho Santos e, antes dele, o Conselheiro Lafayette referiram-se, no entanto, ao testamento, sem aludir ao codicilo quanto à instituição mortis causa das servidões, e parece mesmo de entender que, com a menção expressa do testamento como título institutivo da servidão, o Código de 2002 excluiu semelhante possibilidade para o codicilo; acrescente-se que Carlos Roberto Gonçalves apontou expressamente a circunstância de o novo Código referir o testamento, mas não o codicilo, e Francisco Eduardo Loureiro somente alude ao testamento, quanto ao negócio jurídico mortis causa suscetível de instituir a servidão.
De resto, a doutrina inclina-se à admissibilidade de instituir-se a servidão por meio de contrato, destinação do proprietário, usucapião, decisão judicial (adjudicação em ação divisória –cf. inc. II do art. 596 do Código processual civil brasileiro de 2005, e, ainda antes, inc. II do art. 979 do Código processual de 1973), e, por fim, –somente quanto à servidão de passagem– mediante o fato costumeiro e aparente do trânsito pelo imóvel serviente.
Sublinhe-se, quanto aos contratos, a incidência da norma do art. 108 de nosso atual Código civil: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País” (era já o que, ao tempo do Código civil brasileiro anterior –inc. II do art. 134–, ensinava, de maneira expressa, Carvalho Santos).
Quanto à destinação do imóvel pelo proprietário –título a que Clóvis Beviláqua negava potencialidade para a constituição das servidões–, caracteriza-se ela com o estabelecimento de fato da serventia visível de um prédio em favor de outro (ou de uma parte de maior terreno em benefício de outra parte), seguindo-se a alienação de um deles (ou de uma dessas partes).
Silente o Código vigente a propósito desta instituição pelo destino do imóvel pelo proprietário, observou Carlos Roberto Gonçalves que a jurisprudência pretoriana a tem admitido, exigindo, contudo, que a alienação não exclusa expressamente a servidão e que esta seja aparente, porque assim se pode aceitar que o adquirente tinha a justa expectativa de continuar utilizando as vantagens do prédio dominante, estabelecidas pelo anterior proprietário”.
807. Já Clóvis Beviláqua deixara dito, ao tempo do Código civil de 1916, não ser essencial, nas servidões, que os prédios dominante e serviente guardassem, entre si, contiguidade. Devem ser vizinhos, mas o conceito de vizinhança não implica o de contiguidade; vizinhança é proximidade, que, na hipótese da servidão, verifica-se pela efetividade utilidade da serventia de um prédio a outro (Lafayette).
Esta distinção encontrava-se também no direito romano. Álvaro D’Ors, depois, de ensinar que a vecindad era fundamental para a efetiva relação de uso direto de um prédio com outro, acrescentou que nem sempre se requeria, entretanto, que os imóveis fossem estritamente contíguos. Assim, admitiam-se separados por uma via pública, ou por um rio, ou ligados por uma ponte, desde que não impedissem o uso direto. Referiu-se D’Ors ainda à hipótese da contiguidade justaposta: servidões sobre vários prédios vizinhos, tal que somente um seria contíguo do dominante, ao passo em que os demais teriam apenas continuidade entre eles e não com aquele.
É do Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira, enfim, a resumida asserção: “Basta a vizinhança”, a que se segue um exemplo, que o autor recrutou do direito de Roma: a servidão de vista pode constituir-se “em um prédio separado do dominante por um prédio livre interposto”.