Do cancelamento do registro da servidão

 

(da série Registros sobre registros n. 199)

                                                 Des. Ricardo Dip

808. O vigente Código civil brasileiro dispõe, no caput de seu art. 1.387: “Salvo nas desapropriações, a servidão, uma vez registrada, só se extingue, com respeito a terceiros, quando cancelada”. Trata-se de previsão acomodada também ao que indica o art. 252 da Lei 6.015, de 1973: “O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”.

Essa norma codificada –a do caput do art. 1.387– reproduz, quase à letra, o que dispunha o Código civil brasileiro de 1916 (art. 708), ao formular, entre nós, pela primeira vez, esse preceito de extinção das servidões.

Nosso Código civil de 2002 também reitera, no parágrafo único do mesmo art. 1.387 –“Se o prédio dominante estiver hipotecado, e a servidão se mencionar no título hipotecário, será também preciso, para a cancelar, o consentimento do credor”–, disposição constante do Código civil anterior (art. 712). A matéria tem particular relevo, pois é preciso considerar –o que se verá adiante– se está em vigor a norma do art. 256 da Lei 6.015/1973: “O cancelamento da servidão, quando o prédio dominante estiver hipotecado, só poderá ser feito com aquiescência do credor, expressamente manifestada“.

809. Se, em todo seu gênero, as relações de direito, porque estabelecidas na vida humana, são, como essa da servidão, sujeitas ao tempo, e, pois, à duração –tais como ocorre com os homens, os direitos nascem, vivem e morrem–, isto mais ainda deve considerar-se quando se trate de direitos reais menores, em cuja natureza se assinala a vocação de reintegrar-se na unidade do domínio.

A circunstância de a servidão ser o direito real de desfrute de coisa alheia com menor densidade ou conteúdo (vidē, a propósito, Edmundo Gatti) não afasta a conveniência publicitária do fim de sua duração; isso é de exigir de todos os direitos reais, e se, quanto às coisas móveis, havemos de contentar-nos, na ampla maioria das vezes, com as notoriedade factual da extinção do direito, essa limitação deve-se a dificuldades de identificação cômoda dos bens móveis. Diversamente, quando se trate de imóveis, o registro cumpre a função simbólica da notoriedade da vida e da morte do direito.

O termo extinção do direito compreende-se de dois modos.

O primeiro modo, subjetivo, em que se dá mera desvinculação ou desprendimento de um direito de seu titular correspondente (Manuel Domingues de Andrade fala em desligação do direito, com a quebra do nexo ou enlace preexistente entre esse direito e a pessoa de seu titular). Isto pode ocorrer tanto em consonância com a vontade do titular do direito afligido (p.ex., a alienação negocial de um imóvel), quanto sem essa vontade (na sucessão ab intestato: o exemplo é de Domingues de Andrade, cujas lições trilhamos aqui) ou até contra a vontade do titular: desapropriação, sucessão legitimária, execução, falência, et reliqua.

O segundo modo –que é propriamente o de uma extinção do direito–, diz-se objetivo. Isso pode ocorrer já com a destruição da coisa objeto material do direito (v.g., um automóvel aniquilado pelo fogo ou a erosão destrutiva de um imóvel) ou sem essa destruição: p.ex., o abandono da coisa (res derelicta), a renúncia ao direito, seu não exercício acarretando a prescrição extintiva.

É este segundo modo da extinção das servidões o que mais importa considerar, porque se trata da extinção stricto sensu, ao passo em que a extinção subjetiva é, na linguagem de Carnelutti, não propriamente extinção, mas um fato substitutivo ou substituinte, porquanto o direito aí subsiste, ainda que com diversa titularidade.

810. Vários são os títulos que levam à extinção objetiva das servidões, a diversos deles referindo-se o Código civil brasileiro em vigor, nos arts. 1.388 e 1.389.

Já no caput do art. 1.387 desse Código se indicou um dos títulos extintivos da servidão, que é o da desapropriação, objeto, no direito posto brasileiro, do Decreto-lei 3.465/1941 (de 21-6) –a Lei geral das desapropriações. Em que pese a seus nomes usuais –desapropriação ou expropriação–, dá-se com ela um duplo fenômeno: a desvinculação dominial preexistente e uma nova titularidade, ou seja, de par com um título extintivo há outro, constitutivo, e o domínio, pois, não se extingue, mas, isto sim, substitui-se. Ao dizer o Código civil, no caput de seu art. 1.387, que a desapropriação se põe a salvo da exigência de cancelamento do registro da servidão, apenas deixa dito que a aquisição pelo poder expropriante não demanda a constituição predial; seu registro previsto em lei (parte final do art. 29 do Dec.-lei 3.465/1941) interessa à eventual disponibilidade futura e à conveniência da notícia pública da situação do imóvel; não tem caráter constitutivo, porém.

De consonância com os arts. 1.388 e 1.389 do Código civil, extinguem-se as servidões (designadamente as prediais, dada a raridade das servidões mobiliárias):

(i) por sua renúncia (ou remissão) pelo dono do imóvel dominante (inc. I do art. 1.388); essa renúncia, se expressa (assim a exigia Clóvis Beviláqua, comentando o art. 709 do Código civil de 1916), deve observar “a forma jurídica adequada” (em resumo, o que dispõem os arts. 104 et sqq. do Código de 2002, nomeadamente o que indica seu art. 108: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”). A doutrina de Lafayette, contudo, admitia a renúncia tácita, dando exemplo com o fato de o dono do prédio dominante permitir que o proprietário do imóvel serviente nele realize obra incompatível com o exercício da servidão (nota 239 do § 134 do Direito das coisas; parece ser a orientação doutrinal prevalecente entre nós: cf., ad exemplum, Espínola Filho, Caio Mário da Silva Pereira, Carlos Roberto Gonçalves, Francisco Eduardo Lureiro e Arnaldo Rizzardo). Na hipótese de renúncia tácita à servidão, o título para o cancelamento deve ser judicial (vidē Rizzardo, com apoio na doutrina de Baudry-Lacantinerie e Chauveau);

(ii) “quando tiver cessado, para o prédio dominante, a utilidade ou a comodidade, que determinou a constituição da servidão” (inc. II do art. 1.388 do Cód.civ. bras. de 2002); exemplo comum é o da substituição das servidões de passagem pela abertura de vias públicas; se não houver título com o expresso consentimento do titular do prédio dominante, haverá necessidade de titulação judicial que se obtém mediante demanda negatória da servidão;

(iii) “quando o dono do prédio serviente resgatar a servidão” (inc. III do art. 1.388 do Cód.civ. de 2005); dá-se o resgate com a liberação ou desoneração do imóvel serviente, “mediante acordo dos interessados” (Clóvis Beviláqua) –trata-se de uma dada renúncia onerosa pelo proprietário do imóvel dominante (Beudant, apud Rizzardo; também Clóvis Beviláqua); se houver cláusula de resgate no documento institutivo da servidão, é possível ainda a formação de título judicial em demanda de resgate (Rizzardo);

(iv) “pela reunião dos dois prédios no domínio da mesma pessoa” (inc. I do art. 1.389 do Cód.civ.); tem-se aí a hipótese de confusão, ou seja, os prédios dominante e serviente recaem sob a propriedade de mesma pessoa; embora não se possa dizer de todo impossível a servidão estabelecida entre imóveis de cujo domínio seja titular uma só e mesma pessoa (assim o observou Clóvis Beviláqua acenando ao direito suíço), entre nós isto não se permite, sendo aplicável o aforismo clássico res sua nemini servit (Rizzardo);

(v)   “pela supressão das respectivas obras por efeito de contrato, ou de outro título expresso” (inc. II do art. 1.389 do Cód.civ.); essa hipótese extintiva diz respeito às servidões aparentes, e seu pressuposto é a existência de título expresso (contrato, testamento) de que conste a dispensa de efetivação da serventia a que se destinava o imóvel serviente; se não houver contrato ou diverso título explícito para apoiar a extinção por obras supressas, não cabe o cancelamento do registro com amparo nesta específica previsão legal;

(vi)  “pelo não uso, durante dez anos contínuos” (inc. III do art. 1.389 do Cód.civ.bras.), hipótese abrangente das “servidões contínuas e descontínuas, aparentes e não aparentes, afirmativas e negativas” (Arnaldo Rizzardo); tem-se aí o que se denomina de prescrição liberatória, firmada numa presunção de falta de interesse jurídico em preservar-se a servidão.

A essas hipóteses expressas da extinção das servidões outras devem reunir-se, assim a de usucapião, a de resolução do domínio de quem haja instituído a servidão, o implemento de condição resolutiva ou de termo final, a destruição do imóvel, ou ainda, em fórmula gráfica, a desnecessidade da servidão: “A função da necessidade limita a duração” (Arnaldo Rizzardo).

Observe-se, por fim, que, nada obstante se leia no caput do art. 1.388 do Código civil de 2002 que “o dono do prédio serviente tem direito, pelos meios judiciais, ao cancelamento do registro”, isso, à evidência (e bem o disse Francisco Loureiro), não interdita a apresentação de títulos não judiciais que amparem o pleito de averbação de cancelamento das servidões.

Passemos a considerar, na sequência, se está ou não em vigor a norma do art. 256 da Lei 6.015, de 1973.