Do penhor rural

(da série Registros sobre Registros, n. 234) 

                               Des. Ricardo Dip

  1. 891. Entre as várias espécies de penhor –garantia real que, em sentido próprio, tem por objeto coisas móveis–, algumas, segundo a legislação brasileira em vigor, são suscetíveis de inscrição no registro de imóveis: o penhor rural é uma dessas espécies, como se lê no item 15 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973.

              Esse penhor rural –que se distingue do penhor rural cartular (ou, em outros termos, penhor rural cedular ou cédula de crédito rural)– foi instituído, no Brasil, com o Decreto 3.272, de 5 de outubro de 1855, norma que, assinalando as características fundamentais dessa garantia (“Os Bancos e sociedades de credito real, e qualquer capitalista, poderão também fazer empréstimos aos agricultores, a curto prazo, sob o penhor de colheitas pendentes, produtos agrícolas, de animais, máquinas, instrumentos e quaisquer outros acessórios não compreendidos nas escrituras de hipoteca, e quando o estejam, precedendo consentimento do credor hipotecário” –art. 10), acrescentou-lhe a peculiaridade de ser um penhor sem deslocação possessória e suscetível de inscrição no registro imobiliário (“Este penhor ficará em poder do mutuário, e a prelação dele proveniente exclui todo e qualquer privilegio, devendo ser inscrito no competente registro hipotecário, para que possa produzir os seus devidos efeitos” –§ 1º do art. 10). Lia-se, a propósito dessa inscrição, no Decreto 9.549/1886 (de 23-1), que regulamentou o Decreto 3.272: “O penhor agrícola, para que possa produzir os seus efeitos contra terceiros, depende essencialmente de sua inscrição no Registro geral; observando-se tudo quanto se acha estabelecido para a inscrição das hipotecas convencionais. § 1º As cessões e subrogações do penhor serão averbadas no Registro geral para que possam valer contra terceiros.   § 2º A inscrição será feita no Registro da comarca, onde existirem os bens que servirem de base ao contrato, e só aí serão também realizadas as averbações das cessões e subrogações, e o respectivo cancelamento” (art. 118).

              Com o advento militar da república no Brasil, o Decreto 370, de 2 de maio de 1890, ampliando as hipóteses de constituição do penhor rural (art. 362), manteve-lhe a característica falta de deslocação da posse das coisas empenhadas (art. 364) –característica essa que contribuiu para que Clóvis Beviláqua falasse numa “forma anormal de penhor, que se aproxima da hipoteca”. A essa expressão concorreu ainda a circunstância de o penhor rural abranger, por seu objeto, quer coisas móveis, quer coisas imóveis (p.ex., os frutos pendentes –letra e do art. 362 do Decreto 370– ou máquinas e instrumentos aratórios, como depois se lerá no inc. I do art. 781 do Código civil brasileiro de 1916 e que se dirá coisa imóvel nos termos do art. 43 do mesmo Código).

              Sob a rubrica “penhor agrícola”, o referido Código civil de 1916, repisando o Decreto 3.272, de 1855, e o Decreto 370, de 1890 (alínea b do art. 362), previu serem também objeto dessa garantia os “animais do serviço ordinário de estabelecimento agrícola” (inc. IV do art. 781), mas, embora não se previsse o penhor pecuário, era possível já compreendê-lo  no gênero do penhor rural distintamente do penhor agrícola.

              A Lei 492/1937 (de 30-8), versando o penhor rural e a cédula pignoratícia, depois de definir essa garantia em seu art. 1º e antes de indicar-lhe o objeto nos arts. 6º e 10, admitiu pudesse o título de sua instituição ser público ou particular (art. 2º), apontando-lhe os requisitos (§ 2º do art. 2º) e exigindo-lhe a transcrição (id.). Essa normativa previu de maneira explícita o penhor pecuário, como se lê em seu art. 10: “Podem ser objeto de penhor pecuário os animais que se criam pascendo para a indústria pastoril, agrícola ou de laticínios, em qualquer de suas modalidades, ou de que sejam eles simples acessórios ou pertences de sua exploração”.

              O vigente Código civil brasileiro trata do penhor rural em seus arts. 1.439 a 1.446. Define-lhe a constituição, admitindo que se faça “mediante instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição em que estiverem situadas as coisas empenhadas” (art. 1.439), discriminando-lhes os objetos: o do penhor agrícola, compreendendo (i) máquinas e instrumentos de agricultura; (ii) colheitas pendentes, ou em via de formação (trata-se aí de bens imóveis, como se extrai do art. 79 do mesmo Código); (iii) frutos acondicionados ou armazenados; (v)  lenha cortada e carvão vegetal; (vi)  animais do serviço ordinário de estabelecimento agrícola (art. 1.442); e os do penhor pecuário: “Podem ser objeto de penhor os animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios” (art. 1.444).

              Esse Código, em seu texto original, previra que os penhores agrícola e pecuário apenas poderiam convencionar-se, respectivamente, “pelos prazos máximos de três e quatro anos, prorrogáveis, uma só vez, até o limite de igual tempo” (art. 1.439), prescrevendo que eventual sua prorrogação deveria averbar-se no registro imobiliário (§ 2º do art. 1.439).  Sobreveio, contudo, a Lei 12.873/2013 (de 24-10), que alterou esse art. 1.439 do Código, impondo a propósito: “O penhor agrícola e o penhor pecuário não podem ser convencionados por prazos superiores aos das obrigações garantidas”.

              A Lei 6.015/1973 dispõe sejam –assim o diz no plural, talvez em homenagem às duas espécies desse penhor– que os contratos de penhor rural sejam objeto de registro em sentido estrito (item 15 do inc. I do art. 167), destacando-se a impropriedade textual da referência a contratos, porquanto a inscrição é do título institutivo em sentido material (é dizer, o próprio penhor, e não seu instrumento ou título em acepção formal). Esse registro deve realizar-se no livro auxiliar (livro 3) do cartório competente (cf. inc. VI do art. 178), e, nos termos do que prevê o art. 219 da Lei 6.015, essa inscrição “independe do consentimento do credor hipotecário”, norma que se confirma com o disposto no Código civil nacional de 2002: “Se o prédio estiver hipotecado, o penhor rural poderá constituir-se independentemente da anuência do credor hipotecário, mas não lhe prejudica o direito de preferência, nem restringe a extensão da hipoteca, ao ser executada” (art. 1.440).

              Embora a Lei 6.015 não se refira, de modo específico, ao averbamento da prorrogação do prazo do penhor rural –suposto novo ajuste da dívida–, essa averbação, albergada implicitamente na regra do art. 246 da mesma Lei, prevê-se de maneira expressa no § 2º do art. 1.439 do vigente Código civil: “A prorrogação deve ser averbada à margem do registro respectivo, mediante requerimento do credor e do devedor”.

              Por igual, cabe averbar, quanto ao penhor pecuário, a substituição do objeto da garantia, nos termos previstos no art. 1.446 do Código civil: “Os animais da mesma espécie, comprados para substituir os mortos, ficam sub-rogados no penhor. Parágrafo único. Presume-se a substituição prevista neste artigo, mas não terá eficácia contra terceiros, se não constar de menção adicional ao respectivo contrato, a qual deverá ser averbada”.

              Por fim, observe-se que, efetivado o registro do penhor rural, pode expedir-se a cédula correspondente –cédula rural pigonratícia (ou pignoratícia e hipotecária, quando o caso), suscetível de circulação, nos termos do que se lê no parágrafo único do art. 1.438 do Código civil: “Prometendo pagar em dinheiro a dívida, que garante com penhor rural, o devedor poderá emitir, em favor do credor, cédula rural pignoratícia, na forma determinada em lei especial”. A lei especial que aí se refere é o Decreto-lei 167, de 14 de fevereiro de 1967 (cf., brevitatis causa, arts. 9º, incs. I e III, 10, 14 e 25).