Registro da alienação fiduciária coisa imóvel (parte 1)

(da série Registros sobre Registros, n. 354)

Des. Ricardo Dip

1.105. Seguindo o caminho traçado no inciso I do art. 167 da Lei brasileira de registros públicos, é agora o tempo de examinarmos o registro da alienação fiduciária em garantia, que é objeto do item 35 desse mencionado inciso.

A previsão desse registro stricto sensu da alienação fiduciária em garantia não constava do texto original de nossa Lei de registros públicos (Lei 6,015, de 31-12-1973), provindo da Lei 9.514/1997 (de 20-11), que pôs cobro a uma controvérsia acerca da possibilidade jurídica de inscrever-se a alienação fiduciária, a despeito de lacunar a regulativa registral. Estava mais uma vez em cena o debate entre a taxatividade e a exemplaridade do rol dos títulos suscetíveis de registro e averbação, assim o constante dos incisos do art. 167 da Lei 6.015.

Foi a Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, que introduziu, entre nós, a disciplina da alienação fiduciária em garantia, lendo-se no texto original de seu já agora revogado art. 66: «Nas obrigações garantidas por alienação fiduciária de bem móvel, o credor tem o domínio da coisa alienada, até a liquidação da dívida garantida». Só tendo por objeto coisas móveis.

Sobreveio o Decreto-lei 911, de 1º de outubro de 1969, dando nova redação a esse art. 66 da Lei 4.728: «A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal». Esse dispositivo foi revogado com a vigência da Lei 10.931, de 2 de agosto de 2004.

Nosso vigente Código civil de 2002 −que, sem embargo de sua juventude, está sob a mira de reformas− tinha, à sua origem, algum regulamento acerca da propriedade fiduciária, mas ainda apenas referente a bens móveis, assim se lê em seu art. 1.361: «Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor».

Nada obstante, desde a mencionada Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, instituiu-se, entre nós, a possibilidade jurídica da alienação fiduciária de bens imóveis (inc. IV do art. 17), e, com a Lei 13.043, de 13 de novembro de 2014, deu-se nova redação ao art. 1.367 do Código civil («A propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial deste Código e, no que for específico, à legislação especial pertinente, não se equiparando, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231»), espancando-se toda possível controvérsia acerca da sobrevivência das normas extravagantes de nosso Código civil que versassem o tema da alienação fiduciária.

Observe-se que a Lei 9.514/1997 dispõe sobre o sistema de financiamento imobiliário, mas isso, tal foi de entendimento solidado, não significou que a alienação fiduciária de coisas imóveis, ainda alheia do âmbito estreito das operações próprias desse sistema de financiamento, não fruísse de viabilidade jurídica. Lê-se no § 1º do art. 22 dessa lei, com a redação que lhe deu a Lei 11.481/2007 (de 31-5): «A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena», etc.

Não diversamente dispôs a já referida Lei 10.931, de 2004: «Sem prejuízo das disposições do Código Civil, as obrigações em geral também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel».

1.106. Como conceituar a alienação fiduciária em garantia e como indicar-lhe a natureza?

Melhim Namen Chalub, que se eleva entre os nomes referenciais nesta matéria, disse que «a alienação fiduciária é espécie de negócio em que se utiliza a transmissão da propriedade para fins de garantia» (in Alienação fiduciária -Negócio fiduciário, ed. Gen-Forense, 5.ed., Rio de Janeiro, 2017, p. 238). Eminente civilista, Arnaldo Rizzardo, por sua vez, assim define a alienação fiduciária em garantia «o negócio jurídico pelo qual uma das partes adquire, em confiança, a propriedade de um bem, obrigando-se a devolvê-lo tão logo venha a ocorrer o acontecimento a que se subordinara tal obrigação, ou tenha solicitado a restituição» (in Direito das coisas, ed. Gen-Forense, 8.ed., Rio de Janeiro, 2016, p. 496). E remata: «trata-se de um negócio fiduciário de garantia».

Em resumo, dá-se, com a alienação fiduciária em garantia (de uma dívida), a transferência resolúvel da propriedade e a posse indireta de uma coisa a um credor (que se diz fiduciário), preservando-se a posse direta dessa coisa com o devedor (dito fiduciante), destacando-se, nesse ajuste, a caracterização como direito real de garantia, assim se extrai de sua finalidade.

Resolúvel, diz Carlos Roberto Gonçalves, porque se resolve «automaticamente em favor do devedor alienante, sem necessidade de outro ato, uma vez paga a última parcela da dívida» (Direito civil brasileiro -Direito das coisas, ed. Saraiva, 10.ed., São Paulo, 2015, vol. V, p. 441).

A despeito de uma razoável consonância de muitos juristas pátrios acerca do conceito da alienação fiduciária em garantia, é bastante controversa, entretanto, sua natureza jurídica. Tenha-se em conta, a propósito, o que sustentou Luciano de Camargo Penteado, precoce em sua reconhecida autoridade jurídica e cuja vida entre nós foi também e lamentavelmente precoce. Chamou ele a atenção para o fato de a alienação fiduciária em garantia ter «amadurecido tardiamente no Brasil», tendo isso acarretado sua recondução formal a negócios jurídicos já conhecidos pela doutrina, designadamente às figuras do negócio indireto e do negócio fiduciário.

A primeira dessas figuras, a do negócio indireto, é a do contrato que visa a um fim oblíquo, a um fim «diverso daquele se declarou, sem que haja uma vontade oculta, não manifestada socialmente» (exemplo de negócio indireto, disse o mesmo autor, é o das chamadas «renúncias translativas» nos inventários, em que, mediante a aposição da cláusula «em favor de», obtém-se o efeito de uma doação).

A outra figura apontada −a do negócio fiduciário (de que é ilustração o mandato gratuito)− assenta numa relação de confiança, isto é, numa relação de fidúcia.

Luciano de Camargo Penteado divergiu dos que identificam a alienação fiduciária seja com o negócio indireto, seja como o negócio fiduciário, porque na alienação fiduciária, sustentou nosso autor, não há principalidade na obrigação, senão que, isto sim, no negócio jurídico de direito das coisas, pois seu núcleo conceptivo é um «acordo sobre a transferência da propriedade condicional, com a cláusula resolutiva a favor do devedor» (Direito das coisas, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo,2088, p. 441).

Como quer que seja quanto a essa compreensão da natureza do instituto da alienação fiduciária, o fundamental está em que é um ajuste cuja teleologia é garantir alguma coisa. Não se quer com a alienação fiduciária transferir um bem, mas, sim, dá-lo em garantia. Por isso, pode adotar-se com suficiente razão o que sintetiza Arnaldo Rizzardo: «Trata-se de um negócio de garantia», porque é um contrato «acessório de outro contrato principal».

  Não estará de todo mal dizer, a despeito de um fortuito consequente de transferência dominial, que, na alienação fiduciária, a alienação está mais ou menos como Pilatos no Credo.