Registro da alienação fiduciária coisa imóvel (parte 2)

(da série Registros sobre Registros, n. 355)

Des. Ricardo Dip

1.107. Dando sequência ao capítulo sobre o registro da alienação fiduciária de imóveis, tenha-se em conta o que dispõe o art. 23 da Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997 −«Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título»−, norma essa que deu escora à expressa previsão do art. 40 da mesma Lei 9.514, incluindo-se um item (35) no inciso I do art. 167 da Lei 6.015.

Assim se pôs cobro à controvérsia que grassava acerca da possibilidade de registro da alienação fiduciária à míngua de explícita sua indicação no rol do inciso I do mencionado art. 167 da Lei 6.015.

Tratava-se, com essa discussão, apenas de um debate segmentado sobre o tema geral de conflito entre os que admitiam a exemplaridade dos títulos registráveis no ofício imobiliário e os que, ao revés, sustentavam a taxatividade do rol do referido inciso I do art. 167.

É oportuno referir que essa controvérsia, já tendente a desaparecer −predominante a orientação doutrinária que afirmava o caráter exemplificativo da lista dos títulos suscetíveis de registro stricto sensu no cartório de imóveis−, agora parece solvida com o advento da Lei 14.711, de 30 de outubro de 2023, tal se lê em seu art. 5º, que determinou incluir-se na Lei 6.015 a previsão de registro, em acepção estrita, «de outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico, a exemplo do art. 108 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)».

A amplitude dessa previsão leva a que, em rigor, quase não haja razão já para a listagem do inciso I do art. 167 da vigente Lei de Registros Públicos. Talvez possa justificar-se a relação expressa dos vários títulos indicados nesse referido inciso por motivos pedagógicos, mas, em bom rigor, se «outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis» são suscetíveis de registro imobiliário stricto sensu, isso faz entender que não importa quais negócios reais sobre imóveis, todos podem registrar-se no ofício predial. Apenas restaria alguma razão de ser na lista, quanto a direitos obrigacionais (p.ex., a locação, a penhora, o arresto, o sequestro).

1.108. O tema dos títulos exigíveis para o registro da alienação fiduciária não é isento de controvérsia.

Tal se lê na parte final do art. 23 da Lei 9.514, o registro da alienação fiduciária de imóveis deve ter como causa um «contrato» −o «contrato que lhe serve de título».

Mas qual é a forma desse título? Ou, em outras palavras, o título formal da alienação fiduciária de imóvel deve ser sempre de origem pública ou pode ser de origem particular? A leitura do art. 38 da Lei 9.514, com a redação que lhe deu a Lei 11.706, de 30 de dezembro de 2004, leva a entender que tanto uma quanto outra dessas formas podem admitir-se: «Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública».

Trata-se aí de uma regra especial que excepciona o disposto no art. 108 do vigente Código civil brasileiro, em que se lê: «Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País».

Assinale-se que essa norma do art. 38 da Lei 9.514 não se restringe à esfera do Sistema de financiamento imobiliário, porque, tal se verifica do § 1º do art. 22 da mesma Lei 9.514, «a alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI (…)».

Daí a opinião de que, ex toto genere suo, os contratos referidos na Lei 9.514, «bem como aqueles resultantes da sua aplicação, poderão ser formalizados por instrumento particular» (Melhim Namen Chalhub, Alienação fiduciária -Negócio fiduciário, ed. Gen-Forense, 5.ed., Rio de Janeiro, 2017, p. 255). Prossegue o autor: «A lei não faz restrição alguma quanto às modalidades de contrato passíveis de ser formalizados mediante instrumento particular em relação à Lei 9.514/1997; ao contrário, estende a possibilidade de formalizar por instrumento particular a todos <os atos e contratos referidos nesta lei ou resultantes de sua aplicação>» (p. 256).

Assinale-se que, incorporando-se a essa mesma linha de admissão do instrumento particular, a Lei 14.711, alterando a Lei 13.476, de 28 de agosto de 2017, previu a extensão da alienação fiduciária de imóveis (art. 9º-A da referida Lei 13.476) −ou seja, que a propriedade fiduciária de imóvel, uma vez já constituída, possa utilizar-se «como garantia de operações de crédito novas e autônomas de qualquer natureza». Indicou-lhe a averbação no cartório de registro de imóveis, «por meio da apresentação do título correspondente» (art. 9º-B), formalizado por «instrumento público ou particular» (§ 2º do art. 9º-B), com dispensa de reconhecimento de firma (§ 3º do art. 9º-B).

Embora amplamente acolhido, na praxis registral, o título particular para constituir-se a alienação fiduciária de imóveis, não se pode passar ao largo de uma interessante objeção desfiada por Vitor Kümpel e Carla Ferrari, apoiados no discrimen entre o contrato principal (p.ex., o de compra e venda) e o pacto acessório de garantia. Dizem esses autores: «(…) é um erro afirmar que a alienação fiduciária em garantia pode ser realizada por instrumento particular em qualquer aquisição de imóvel, pois, por ser um contrato acessório, não pode excepcionar a regra do art. 108 do Código Civil. Logo, o acessório não é fator determinante do principal, na medida em que o correto seria a lavratura de escritura pública de venda e compra com pacto de alienação fiduciária. Porém, infelizmente, a prática tem admitido o uso de instrumento particular de forma indistinta» (Tratado notarial e registral, ed. YK, São Paulo, 2020, vol. 5, tomo II, p. 1.802).

Em que pese à plausibilidade dos argumentos desfiados por estes dois eminentes juristas, parece melhor entender que a Lei 9.514 −mal ou bem, bem ou mal− estabeleceu uma disciplina especial para o tratamento da alienação fiduciária, abarcando o tema de sua relacionação com os ajustes principais. Dessa maneira, esse diploma normativo constitui-se como uma «lei em contrário», assim o expressamente ressalvado ao princípio do disposto no art. 108 do Código civil: «Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos, etc.».

Vem à feição julgado do Superior Tribunal brasileiro de Justiça (REsp 1.987.389, 30-8-2022, Rel. Min. Fátima Nancy Andrighi), sublinhando a existência de um «regime especial da Lei nº 9.514/97». Lê-se numa das ementas do acórdão: «No ordenamento jurídico brasileiro, coexiste um duplo regime jurídico da propriedade fiduciária: a) o regime jurídico geral do Código Civil, que disciplina a propriedade fiduciária sobre coisas móveis infungíveis, sendo o credor fiduciário qualquer pessoa natural ou jurídica; e b) o regime jurídico especial, formado por um conjunto de normas extravagantes, dentre as quais a Lei nº 9.514/1997, que trata da propriedade fiduciária sobre bens imóveis».

Pode não ser desejável a admissão do ingresso de instrumentos particulares no registro de imóveis. Mas o fato é que parece, no caso da alienação fiduciária de imóvel em garantia, ser isso uma previsão legal em vigor.