(da série Registros sobre Registros, n. 332)
Des. Ricardo Dip
1.077. Vimos que a doação imobiliária inter vivos exige o registro como uma sorte de insinuatio para resguardar a transcendência do ato (assim, Puig Peña, o.v.t.c., p. 172), tratemos agora, como o havíamos prometido, do tema da divisão de suas espécies ou partes subjetivas, o que muito importa na esfera das limitações da disponibilidade do doador.
Todavia, é caso de logo avisar que, se há algo em que tão manifestamente parece aplicarem-se de modo particular estas palavras do Eclesiastes (12,12) −faciendi plures libros nullus est finis (não tem fim compor muitos livros)− é exatamente no que respeita à divisão. Ou seja, expandindo-se a passagem do Rei Salomão, não aparenta exagero dizer que dividir é uma tarefa sem fim. Não se trata de recusar a importância da divisão, que é um dos três modos de saber. Dá-se, porém, que ela pode ser também um modo de dificultar o saber, quando, dada a notória pluralidade de seus critérios possíveis, exagera-se em multiplicar as classificações. Vamos, pois, cuidar de dividir a doação com temperamento.
Já referimos a divisão da doação quanto à amplitude de seu objeto material −que pode ser móvel ou imóvel: doação mobiliária e doação imobiliária (art. 538 do Código civil brasileiro em vigor: "Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra"). Por sua natureza, e à míngua de exceção legal, apenas se atrai ao ofício imobiliário a doação relativa a imóveis, certamente os imóveis por natureza (cf. art. 79 do Código: "São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente") e os direitos reais sobre imóveis (inc. I do art. 80 do mesmo Código).
Quanto ao domínio desse objeto pelo doador, a doação pode ser de coisa própria ou de coisa alheia. O tema diz respeito à consecutividade na cadeia dominial (ou, por outro ângulo, à disponibilidade jurídica da coisa). É evidente que não se possa registrar uma transferência de propriedade sem que o disponente seja seu titular registral, mas o que se discute é acerca de uma futura aquisição de domínio sobre a coisa objeto do título. Versando coisas móveis, nosso Código civil, depois de preceituar "feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade" (caput do art. 1.268), prevê: "Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição" (§ 1º do mesmo art. 1.268). No mesmo sentido, nada parece interditar que o título da doação de um imóvel anteceda a aquisição de domínio pelo doador. O paralelismo entre a insinuação pelo registro −quanto aos bens imóveis− e a tradição, relativa às coisas móveis, confirma o princípio de a doação imobiliária apenas efetivar-se (ou atualizar-se) com o registro e não a contar da data do título formal do negócio.
Quanto ao tempo dos bens objeto, admite-se a doação de coisa futura −que deve distinguir-se, por evidente, da doação a pessoa futura (art. 554 do Código civil: "A doação a entidade futura caducará se, em dois anos, esta não estiver constituída regularmente"), aqui incluído o nascituro, que, para o direito brasileiro, é pessoa, a despeito do que dispõe a letra da primeira parte do art. 2º do Código ("A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida…"), porque, diversamente e com maior hierarquia, prevê o n. 2 do art. 1º do Pacto de São José da Costa Rica, em norma de todo conformada com a lei natural: "Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano"; scl. não importa se em vida extra ou intrauterina); de todo o modo, "a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro" (parte final do art. 2º do Código civil brasileiro), e diz ainda o art. 542 do mesmo Código: "A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal". A doação de coisa futura não atrita com princípio algum de direito, valendo como doação condicional (vale dizer, uma doação que depende de um evento futuro e incerto); veja-se o que, a propósito, diz Agostinho Alvim: "A coisa futura pode ser objeto de doação: ex., os frutos que eu colher este ano; o primeiro bezerro que nascer de tal vaca que me pertence. Isto não é promessa de doar, e, sim, doação condicional: se colher, se nascer" (o.c., p. 11).
A doação pode ser simples (ou seja, uma doação pura e meramente benigna, benéfica ao donatário) ou modal (que se diz onerosa ou com encargo). A clave para distinguir uma e outra é a da onerosidade econômica que grava a doação modal (em que "la esencia propia de la liberalidad queda disminuída por la exigencia al donatario de la realización de una determinada actividad impuesta por el donante" −Puig Peña), de tal sorte que a aposição de reserva de usufruto ou ainda de cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade ou inalienabilidade não configuram encargo da doação que, nesta hipótese, continua a ser pura e simples, exatamente por não imporem ônus econômico ao donatário (neste sentido, p.ex., Vitor Kümpel e Carla Ferrari, o.v.t.c., p. 1.156). Por outro aspecto, é preciso verificar, em cada caso, se há uma obrigação efetivamente vinculante a cumprir-se pelo donatário (modus qualificatus) ou apenas um talante do doador, manifestando um desejo pessoal sem o impor como obrigação ao donatário (doação modus simplex). Atente-se ainda ao que dispõem os arts. 543: "Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura"; 553: "O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral. Parágrafo único. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito", e 539 do Código civil brasileiro: "O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo"− e considerando-se, pois, que o silêncio do donatário não induz aceitação tácita da doação modal.
Há ainda muitas outras classificações da doação apontadas no Código civil: p.ex., a doação de ascendente a descendente (art. 544: "A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança"), a doação conjuntiva (art. 551: "Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual. Parágrafo único. Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo"), a doação universal (em que o doador transfere ao donatário a integralidade −ou quase ela− de seu patrimônio material; esse tipo de doação é só restritamente admitido na lei brasileira, como resulta do art. 548 do Código civil: "É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador"; dessa doação universal distingue-se a doação singular), a doação remuneratória (cuja finalidade está em "retribuir ou compensar serviços" −Carvalho de Mendonça, e da qual trata o art. 540 do Código: "A doação feita em contemplação do merecimento do donatário não perde o caráter de liberalidade, como não o perde a doação remuneratória, ou a gravada, no excedente ao valor dos serviços remunerados ou ao encargo imposto"), a doação com cláusula de reversão ou retorno (art. 547: "O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário. Parágrafo único. Não prevalece cláusula de reversão em favor de terceiro"), a doação inoficiosa (art. 549: "Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento"), e a essas espécies de doação podem ainda juntar-se, assim o disse Carvalho de Mendonça, outros tipos "que a lei não regula, mas que aparecem como fatos muito comuns da vida prática" (o.c., tomo I, p. 81), tais a doação mútua, a doação indireta (p.ex., renúncia, remissão de débito), a doação disfarçada (v.g., encobrindo compra e venda).