Registro de desapropriação (primeira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 333)

Des. Ricardo Dip

 

1.078. Contempla a Lei nacional 6.015, de 1973, o registro stricto sensu da "desapropriação amigável e das sentenças que, em processo de desapropriação, fixarem o valor da indenização" (item 34 do inc. I do art. 167).

Parece convir examinar a questão desse registro no plano amplo do que se pode designar «estatuto do domínio público» ou, noutra denominação, «estatuto da dominialidade», o que mais aparenta justificar-se quando se queira −e é exatamente meu entendimento− sustentar as vantagens de registrarem-se todos os domínios imobiliários públicos (ou seja, não importando a modalidade do uso predial pelo estado), sobretudo à vista dos benefícios para um mais adequado conhecimento integral da realidade fundiária e a ordenação integral dos bens territoriais.

A este exame ampliado, contudo, é preciso que concorra a paciência de nossa generosa audiência, porque, ainda sendo o caso de prestigiar a concisão de restringir nossas considerações ao que diga respeito ao Brasil e a Portugal (porque é da Terra e do Povo lusitanos que descendemos), haverá, nada obstante, uma série de assuntos a referir antes de tratar, de maneira especializada, acerca da desapropriação.

Comecemos, pois, nossa tarefa, indicando, em linhas muito gerais, o processo histórico de aquisição do estatuto da dominialidade em Portugal, o que refletiu na situação do domínio público no Brasil.

1.079.   Parte primeira: as presúrias.

Após o tempo de principal dominação da tribo celtíbera dos lusitanos −entre os quais avultaram os nomes heroicos de Viriato e de Sertório−, os romanos ocuparam a Península ibérica por cerca de 600 anos (de 218 a.C. a 410), sucedendo-os os invasores germânicos (suevos, que ali ficaram entre 410 e 585, e visigodos, de 585 a 711). Deu-se, na sequência, a invasão muçulmana, a partir de 711 (data da Batalha de Guadalete), dominando os árabes islâmicos quase toda a Península ibérica já em 714 −salvo, quanto a ela, uma porção do norte, os Montes Cantábricos− e expandindo-se até a Sicília, a Sardenha, a Grécia e Jerusalém, apenas obstados em sua invasão, entretanto, na Batalha de Poitiers, em 732, ali vitoriosas as tropas francesas de Carlos Martel.

A partir desta interrupção de sua marcha, os muçulmanos passaram a retroceder pela Península ibérica, graças à célebre resistência de Pelágio, que venceu a Batalha de Covadonga (no ano de 718), prosseguindo a denominada Reconquista cristã com a recuperação da Galícia e da região entre os rios Minho e Douro.

Se a Reconquista, no plano religioso e cultural, implicou uma recristianização, ela traduziu-se, no aspecto material, como a recuperação dos territórios hispânicos que haviam sido dominados pelos árabes. A essa recuperação territorial deu-se o nome de presúria. Trata-se aí, pois, de áreas geográficas retomadas dos árabes e que eram, assim, incorporadas ao reino vitorioso, que era, até o ano de 910, o Reino das Astúrias (a partir desse ano, dividiu-se esse Reino entre os três filhos de Dom Alfonso III, O Magno, e a capital das Astúrias se trasladou para o Reino de Leão, em mãos do primogênito de Alfonso III, de nome Garcia, a cuja morte, em 914, sucedeu seu irmão Ordoño II, que agregou ao Reino de Leão a Galícia e a parte de terras entre o Minho e o Douro, parte essa que lhe coubera na divisão hereditária do antigo Reino das Astúrias).

Já em 868, Dom Alfonso III, Rei das Astúrias cria dois condados −o de Castela e o Portucalense−, e o faz de maneira que, sendo presúrias, atribuiu-os, com alguma autonomia, a gestão nobiliárquica. Assim é que a região do que hoje é o norte de Portugal −é dizer, entre os rios Minho e Douro− foi entregue, a título hereditário (ou seja, com o regime de uma sucessão condal dinástica), a Vímara Peres (845-873), um nobre nascido na região de Guimarães. O território desse condado −que Diogo Freitas do Amaral, em seu interessante livro Da Lusitânia a Portugal (ed. Bertrand, Lisboa, 2017, p. 56 sqq.), chama de primeiro condado portucalense, expandiu-se com a reconquista de Coimbra, de maneira que o território desse condado passou a estender-se do Minho ao Mondego.

Esse primeiro Condado Portucalense durou até 1071, ano em que seu titular, Nuno Mendes, tentou libertar-se da vassalagem ao Reino de Leão, sendo, porém, vencido pelo Rei leonês Dom Alfonso VI, que passou a administrar diretamente o território portucalense. Isto foi assim até 1094, quando Alfonso VI atribuiu ao Conde Raimundo de Borgonha −que era seu genro, casado com sua filha legítima Dona Urraca− tanto a Galícia, quanto a área do antigo Condado Portucalense (por isto, inicia-se aí o segundo Condado Portucalense). Mas o Conde Raimundo de Borgonha sofreu insucessos militares frente aos almorávidas nas cercanias de Lisboa, e, por esta razão, Dom Alfonso VI destituiu-o da governança do Condado Portucalense, que foi dado em dote ao Conde Henrique de Borgonha, outro dos genros do Rei de Leão (e a esta altura, Dom Alfonso VI era também Rei de Castela), conde este que era casado com Dona Teresa de Leão, filha bastarda do rei. Inaugurava-se, assim, o terceiro Condado Portucalense, ainda uma vez com terras atribuídas pelo poder político senão ao domínio, ao amplo uso dos particulares escolhidos.

Para ver-se o que representavam as presúrias, resultantes do direito de reconquista, bastaria considerar que, em 1122, morto o Conde Henrique de Borgonha dez anos antes, a Regente do Condado Portucalense, Dona Teresa de Leão, doou o mosteiro de Leça (que hoje se integra à cidade de Matosinhos) para ali instalar-se a Ordem dos Hospitalários (ou Ordem do Hospital, depois chamada Ordem de Malta), época mais ou menos em que a mesma Regente doou a vila de Soure, nas cercanias de Coimbra, para ali se sediar a Ordem dos Templários. Também a antiga Ordem dos Freires de Évora, fundada, em 1162, por Dom Afonso Henriques (ou seja, na verdade, por então já designado Dom Afonso I, Rei de Portugal), recebeu por doação a terra em que se instalou, na primeira do século XIII, na cidade de Avis (disto resultando que se viesse a conhecer com o nome Ordem Militar de Avis).

Outro fato digno de considerar-se quanto ao poder de disponibilidade em relação às presúrias. Vamos ao ano de 1385, à Batalha de Aljubarrota, na qual se distinguiu o grande Condestável de Portugal, Nun'Álvares Pereira (1360-1431), a cujo gênio militar deve ser tributada a surpreendente derrota dos castelhanos liderados por Dom Alfonso I. Pois bem, de Dom Nun'Álvares Pereira, disse o historiador português José Hermano Saraiva estar ele para Portugal, quanto Santa Joana D'Arc para a França, tamanho seu papel histórico para a preservação da independência de Portugal (lembremo-nos de que o Rei de Castela, Dom Juan I, casara-se com a infanta Beatriz, filha de Dom Fernando I, Rei de Portugal, e de Dona Leonor Teles de Menezes, de modo que, morto Dom Fernando, em 1383, sustentava Dom Juan de Castela sua legitimidade ao trono português). Em reconhecimento de tantos méritos do Condestável, deu-se que o sucessor de Dom Fernando I, que foi escolhido pelo povo português e aclamado nas Cortes de Coimbra, Dom João I −o antigo Mestre de Aviz−, doou a Dom Nun'Álvares Pereira os três condados que então havia em Portugal: o de Barcelos, o de Arraiolos e o de Ourém; além de tantas vilas que o Condestável se tornou dono de mais terras no território português do que o próprio Reino de Portugal. (Coisa extraordinária é pensar que Dom Nuno − o "Nuno fero −disse Camões− que fez ao Rei e ao Reino tal serviço"−, sendo tão rico de bens materiais, ingressou, em 1423, na vida religiosa no Convento lisboeta do Carmo; e já agora foi canonizado, em 2009, com seu nome carmelitano de São Nuno de Santa Maria).

Prosseguiremos.