(da série Registros sobre Registros, n. 330)
Des. Ricardo Dip
1.073. Dando sequência ao tema do registro da doação imobiliária entre vivos, examinaremos, ainda que modo breve, (i) o quanto exigível para a qualificação jurídica relativa a esse registro; (ii) a divisão das doações suscetíveis de registrarem-se; e (iii) a aceitação da liberalidade pelo donatário.
Quanto ao primeiro ponto, o da qualificação registral das doações, pode dividir-se em três aspectos: (i) subjetivo; (ii) objetivo e (iii) instrumental.
Recebido no ofício imobiliário e ali protocolizado o título formal de uma doação de imóvel, o registrador competente −e sempre o pressuposto inaugural a considerar é o da própria competência material e territorial do registrador− examinará, no aspecto subjetivo, além da determinação e especialização do doador e do donatário, o tema da correspondente capacidade jurídica.
Para logo, cabem verificar-se os requisitos gerais da capacidade para os atos próprios da ordem civil, assim, p.ex., o que se contém no art. 3º do Código civil brasileiro em vigor −"São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos"− e o que se encontra no art. 4º do mesmo Código, referindo-se à incapacidade relativa quanto a certos atos. Desta maneira, pessoas absoluta ou relativamente incapazes não podem doar, sequer estando representadas por tutor ou assistidas por meio de curador: "Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob pena de nulidade: (…) II - dispor dos bens do menor a título gratuito" (art. 1.749 do Código; lê-se no art. 1.781 do mesmo Código: "As regras a respeito do exercício da tutela aplicam-se ao da curatela, com a restrição do art. 1.772 e as desta Seção"). Lembremo-nos ainda do que dispõe a norma do art. 1.647 desse Código civil: "(…) nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: (…) IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação". Assinale-se, a propósito, a ressalva que consta do art. 1.648: "Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la".
Fazem ver Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari que há quatro hipóteses de dispensa da autorização conjugal para a doação: (i) quando o regime matrimonial de bens for o da separação total convencional; (ii) segundo a regência de participação final nos aquestos com cláusula liberatória pactuada (cf. o disposto no art. 1.656 do Código civil: "No pacto antenupcial, que adotar o regime de participação final nos aquestos, poder-se-á convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares"); (iii) na doação propter nuptias em prol dos filhos comuns (veja-se o par. único do art. 1.647 do mesmo Código: "São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada"; e, matéria que não se abrange na competência do ofício imobiliário, (iv) na doação remuneratória de bens móveis (inc. IV do art. 1.647; cf. Tratado notarial e registral, ed. YK, São Paulo, 2020, vol. 5, tomo I, p. 1.152).
Acrescentem-se ainda duas normas próprias referentes, em parte, ao aspecto subjetivo na doação, quais sejam as dos arts. 551 do Código civil de 2002: "Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual", prosseguindo seu parágrafo único: "Se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo"; e 544: "A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança".
Observe-se, ainda quanto ao plano dos requisitos subjetivos na doação, ser válida a que se destine a nascituro, desde que aceita por seu representante legal (art. 542 do Código civil).
1.074. No tocante com o aspecto objetivo −ou seja, do objeto material− das doações, importam, quanto ao registro imobiliário, por evidente, as que digam respeito a imóveis, e, ainda uma vez aqui invocando o que indicam Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari (loc.cit., p. 1.153), não podem ser objeto de doação (i) imóveis marcados com o gravame (pactuado ou judicial) de indisponibilidade, (ii) imóveis de tutelados ou curatelados (cf. arts. 1.767, 1.728, 1.772 e 1.781 do Código civil); (iii) imóveis objeto de penhora em prol da União (assim, lê-se no art. 53 da Lei 8.212, de 24-7-1991: "Na execução judicial da dívida ativa da União, suas autarquias e fundações públicas, será facultado ao exequente indicar bens à penhora, a qual será efetivada concomitantemente com a citação inicial do devedor. § 1º Os bens penhorados nos termos deste artigo ficam desde logo indisponíveis"), cabendo aqui destacar não exigir esta referida normativa especial de regência a averbação prévia da penhora para que se grave de indisponibilidade o imóvel constrito; isto não dispensa, todavia, a incumbência ao exequente (ainda que se trate da União federal) de "proceder à averbação em registro público do ato de propositura da execução e dos atos de constrição realizados, para conhecimento de terceiros" (inc. IX do art. 799 do vigente Código brasileiro de processo civil; cf. ainda arts. 828 e 844: "Para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, cabe ao exequente providenciar a averbação do arresto ou da penhora no registro competente, mediante apresentação de cópia do auto ou do termo, independentemente de mandado judicial").
Saliente-se ainda o que dispõem os arts. 548 e 549 do Código civil, enunciando este último: "Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento". Por sua vez, lê-se no aludido art. 548: " É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador".
1.075. Quanto aos títulos em acepção formal ou instrumentos idôneos a atualizar-se no registro imobiliário da doação, prevê o art. 541 do Código civil: "A doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular", importando ao discrimen de sua eleição o que dispõe o art. 108 do mesmo Código: "Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País".
Não é de todo infrequente que se admita conste dessa norma do art. 108 do Código de 2002 (como também quanto ao art. 134 do Código civil de 1916) que a referência à espécie (escritura pública) seja expansiva a seu gênero próximo (título ou instrumento público), ou, quando menos, a uma espécie símile à escritura pública: o título de origem judicial.