(da série Registros sobre Registros, n. 302)
Des. Ricardo Dip
1.022. Ainda versando o tema da «capacidade (subjetiva) na compra e venda», embora observando-se, à partida, que essa capacidade se sujeita às normas gerais relativas às contratações, calham referir, porém, (i) a existência de restrições específicas, e (ii) a assimetria dessas restrições quanto aos status do vendedor e do comprador.
Sendo certo, pois, que toda pessoa a quem se atribui a livre administração de seu patrimônio pode contratar, ou seja, toda pessoa pode contratar −incluída a possibilidade de vender e de comprar−, desde que não seja legalmente incapaz. Isto, esta ampla capacidade de pactuar, não impede que se considerem, quanto à compra a venda, em acréscimo, hipóteses que sejam de ausência da legitimação contratual. Pode ler-se, a propósito, na doutrina de Ruggero Luzzatto: "(…) devemos estudar aquelas hipóteses em que, para usar uma expressão de escritores modernos, faltaria a legitimação para contratar, ou, para falar mais claramente, aqueles casos nos quais a certas pessoas são proibidos certos contratos de compra e venda" (o.c., item 14).
Não se trata aí de algo que afete a capacidade contratual, senão que de um déficit de legitimação próprio à compra a venda e que se estabelece por meio de uma relação entre, de um lado, a pessoa pactante e, de outro lado, a coisa objeto do contrato (cf. Francesco Degni, o.c., item 20).
Bem observou Luzzatto que a incapacidade se funda, ordinariamente, na falta de aptidão natural da pessoa, ao passo em que a ilegitimação para a compra a venda se estabelece por motivos de conveniência social. Além disto, prossegue o mesmo autor, a incapacidade abrange o conjunto de todas as atividades do sujeito; a falta de legitimação para a compra e venda é própria desta espécie contratual. Note-se, entretanto, que a incapacidade pode suprir-se pela representação (p.ex., a dos pais, a dos tutores) ou pela assistência (do curador), e, diversamente, a deficiência de legitimação não pode suplementar-se, exatamente porque diz respeito a um status relacional e não apenas à situação do sujeito. É a relação que se encontra, de modo particular, entre uma determinada pessoa e uma certa coisa o que leva à exclusão da possibilidade de realizar-se a compra a venda, de maneira que não bastaria a afastar a ilegitimação o suplemento que apenas poderia referir-se a um dos isolados extremos dessa relação.
A matéria, especificamente, demanda o concurso da lei positiva. Por isto, embora a própria categoria de limitações para a compra e venda possa considerar-se, em abstrato, certo que se trata de algo recorrente nas legislações, um dado universal −e, pois, sob este aspecto, um dado absoluto−, é relativa, por outro aspecto, ao depender das especificações normativas nos vários ordenamentos jurídicos.
O tema, por evidente, interessa à qualificação registral, e a atual legislação brasileira de regência alista algumas hipóteses. Assim, a da vedação da venda de ascendente a descendente, objeto do art. 496 do Código civil de 2002: "É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido". Saliente-se que este dispositivo não inclui proibição de que a venda se faça de descendente a ascendente, não distingue entre descendentes imediatos (filhos) e descendentes mediatos (netos, bisnetos, tetranetos, etc.), nem sanciona de nulidade o contrato que vulnere o preceito em exame (ao tempo do Código civil anterior, havia forte controvérsia sobre a sanção correspondente, se de nulidade ou anulabilidade, mas prevaleceu a solução, agora expressa no Código de 2002, admitindo-se a confirmação do ajuste pelo descendente ou cônjuge do alienante de cujo consentimento antes se abdicara). Sublinhe-se que a lei dispensa, contudo, a anuência do cônjuge do alienante quando o regime matrimonial de bens for o da separação obrigatória (par. único do art. 496 do Código civil).
A discutida anuência dos descendentes −ou do cônjuge do vendedor− deve ser expressa, segundo a letra do art. 496 do Código; antes do Código civil de 1916, parte da doutrina entendia caber fosse tácita essa anuência (Carvalho de Mendonça, Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua); agora só se poderia conjecturar nessa espécie tácita de anuência quando decorrido o prazo decadencial da demanda anulatória (prazo esse que é de dois anos, nos termos do que dispõe o art. 179 do Código civil: "Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato"
Lacunar o referido art. 406 quanto à forma do consentimento dos descendentes, deve aplicar-se, como o entende Carlos Roberto Gonçalves, "a regra geral do art. 220" do Código civil, em que se lê: "A anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento".
Ainda outras hipóteses de limitação específica para vender podem apontar-se quanto à alienação de parte indivisa em condomínio (art. 504 do Código civil), a alienação entre cônjuges −ressalvado o caso da separação absoluta de bens (arts. 499, 1.648 e 1.657, inc. I) e as alienações enunciadas no largo dispositivo do art. 497 do mesmo Código civil, em que se lê:
"Sob pena de nulidade, não podem ser comprados, ainda que em hasta pública:
I - pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, os bens confiados à sua guarda ou administração;
II - pelos servidores públicos, em geral, os bens ou direitos da pessoa jurídica a que servirem, ou que estejam sob sua administração direta ou indireta;
III - pelos juízes, secretários de tribunais, arbitradores, peritos e outros serventuários ou auxiliares da justiça, os bens ou direitos sobre que se litigar em tribunal, juízo ou conselho, no lugar onde servirem, ou a que se estender a sua autoridade;
IV - pelos leiloeiros e seus prepostos, os bens de cuja venda estejam encarregados".
Assinalável é que essas limitações são sempre diretamente reportáveis à situação relacional em que, na condição de sujeito, está o alienante. Carvalho de Mendonça doutrinava que isto estava justificado exatamente por se tratar de uma alienação, ou seja, protegia-se mais quem poderia perder o domínio do que o comprador, que adquiria propriedade.
O que se extrai desta assimetria protetiva mais do vendedor do que do comprador é a defesa prevalecente da estática jurídica, e não da dinâmica do tráfego dominial. É que à ordem do direito mais interessa, efetivamente, a conservação de situações do que sua mudança, pela simples razão de que a dinâmica tem por objetivo exatamente obter uma estabilidade. Se é certo que se deva proteger também o dinamismo jurídico, evidente, não menos, é que mais ainda deva assegurar-se a finalidade dessa dinâmica.