Registro de compra e venda (terceira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 301) 

                     Des. Ricardo Dip

 

1.021.      Conforme já ficou dito, é cediça a asserção doutrinária de que são elementos essenciais do contrato de compra e venda o consentimento, a coisa (objeto do pacto) e o preço −consensus, res et pretium.

Para a validade do consentimento preciso é que os contratantes satisfação o requisito da capacidade, requisito este que se acomoda às normas gerais do direito civil, salientando-se a assimetria entre a capacidade de vender e a de comprar: "A lei −disse Carvalho de Mendonça (o.c., n. 141)− apenas, e com muita lógica, exige mais extensa capacidade para vender do que para comprar, pois que aquele ato envolve uma alienação".

O vernáculo «capacidade» provém do substantivo latino capacitas, capacitatis, com o sentido, assim o referiu João de Freitas Guimarães (Vocabulário etimológico do direito, 1991, p. 38), de “dimensão de conteúdo, valor de continência, continência, aptidão, dons ou pendores excelentes”.

No restrito campo jurídico, a capacidade corresponde, por primeiro, à acepção de «ter direitos»: é a isto que se tem designado com as expressões «capacidade de gozo», «capacidade de direito», «capacidade jurídica»; trata-se com essa noção de um predicado próprio da personalidade; disse bem Goffredo Telles Júnior (Iniciação na ciência do direito, 2006, § 126): “Toda pessoa possui a capacidade de direito”. Vicente Rao, nas páginas do festejado O direito e a vida dos direitos (2013, p. 619, nota 15), chegou até a identificar ambas os conceitos −personalidade e capacidade de direito−, impugnando a frequentada divisão entre capacidade de direito e capacidade de fato (esta última, designada também como «capacidade de agir», «capacidade de exercício de direitos»), porque, assim o disse esse notável jurista brasileiro (de quem José Pedro Galvão de Souza afirmou ter sido o maior de todos nossos juristas), a capacidade que se diz de direito confunde-se “com a noção de personalidade, pois se define como aptidão para a titularidade dos direitos”, conceito este que é, por igual, uma definição da própria personalidade no âmbito jurídico.

 

De toda a sorte, senão essa equivalência apontada por Vicente Rao, ao menos a inerência da capacidade à pessoa −ou seja, a capacidade como um predicável próprio da personalidade− permite que que se reconheça não haver personalidade que se possa destituir inteiramente de capacidade no domínio do direito; seria, enfim, até refutar a personalidade uma negativa integral de sua capacidade de ter direitos. E se assim pode entender-se essa capacidade, enquanto próprio da personalidade, é porque aquela, a capacidade, é um atributo subjetivo manifesto em toda relação na qual se aviste o efeito de um ato jurídico e “um modo de ser da pessoa que o pratica” (Francesco Carnelutti); se, pois, uma criança celebra um contrato, ainda que esse ajuste contenha todos os supostos contratuais objetivos, disto não resultarão efeitos obrigacionais, porque faltará um modo exigível de ser da pessoa contratante. É ainda de Carnelutti a lição de que a capacidade, no território do direito, traduz-se “numa idoneidade da pessoa, em atenção às suas qualidades, para de determinados fatos, obter efeitos jurídicos” (Teoria geral do direito, 1999, § 118). Em outros termos, a capacidade é a aptidão de uma pessoa ou dado grau de sua aptidão para exercer atos jurídicos (cf. Teixeira de Freitas, Vocabulário jurídico, 1983, tomo I, p. 25).

Clássica é a divisão entre capacidade de direito e capacidade de agir juridicamente (capacidade de ação, capacidade de fato, etc.). São variados, na doutrina, os critérios com que se fundamenta essa divisão: Goffredo Telles Júnior, por exemplo, disse que a capacidade fato é uma capacidade limitada, é a capacidade de apenas alguns direitos e deveres; Manuel Domingues de Andrade, por seu turno, conceitua a capacidade de agir como “a aptidão de um sujeito jurídico para produzir efeitos de direito por mera atuação pessoal” (Teoria geral da relação jurídica, 1974, vol. I, p. 31), pondo em relevo, pois, não a capacidade objetivamente limitada de ter alguns direitos, mas a capacidade para adquiri-los ou assumi-los de modo pessoal, por ato próprio, sem a necessidade de intervenção de um representante secundum legem. Este último parece ser o critério esposado pelo direito brasileiro em vigor, como pode verificar-se do art. 4º do Código civil de 2002, depois de o mesmo Código enunciar em seu art. 1º: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.

Com efeito, segundo se prevê nesse referido art. 4º de nosso Código civil, a capacidade das pessoas (art. 12º) para adquirir direitos e deveres −ou assumi-los− de modo pessoal, por ato próprio, está limitada, de maneira relativa, quanto aos maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, aos ébrios habituais e aos viciados em tóxico, aos pródigos e aos que, em virtude de causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. Antes da vigência da Lei brasileira 13.146 (de 6-7-2015), nosso Código civil de 2002 dispunha serem "absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil" os menores de dezesseis anos, os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos, e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade (art. 3º).

Pode variar, entretanto, o uso do termo «capacidade», em consonância com sua especialização nos segmentos da ordenação positiva. Por exemplo, ao falar-se em «capacidade tributária» não se está a compreender uma aptidão para adquirir direitos ou deveres por ato pessoal, próprio, mas, isto sim, a aptidão de ser credor na relação tributária. Já o termo «capacidade ativa», no direito eleitoral brasileiro em vigor, parece compreender o exercício pessoal do direito de voto (que, nada obstante, também se prevê como dever): mas outrora, ao tempo da Constituição imperial brasileira de 1824, admitia-se o voto por procuração. Noutros exemplos, a noção de «capacidade trabalhista» considera a aptidão para o exercício pessoal dos atos laborais;  a de «capacidade notarial» é referível, principalmente, à capacidade dos outorgantes (e não se pode recusar que se estenda aos representantes e a outros intervenientes nos atos notariais), mas abarca ainda uma série de noções específicas dentro no gênero «capacidade notarial», observada a variação dos ordenamentos positivos: assim, fala-se em «capacidade aquisitiva notarial», «capacidade dispositiva notarial», «capacidade dos estatutos» (pessoal, real e formal), «capacidade dos estados civis», ou das «dignidades, dos cargos», etc. (cf., a propósito, Miguel Fernández Casado). Ad summam, pode até dizer-se que não há questão de capacidade sem interesse para a atuação do notário; na esfera dos registros públicos, fala-se na «capacidade registral»: p.ex., prevê a Lei 6.015 a particular capacidade de declaração do nascimento e de óbito perante o registro civil de pessoas naturais (arts. 52 e 79); ainda, a capacidade para pleitear a alteração do nome (“O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa” −art. 57; cf. também o § 8º do mesmo art. 57 sobre a capacidade dos enteados para averbar “o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família”).

Quanto ao registro imobiliário, a mesma Lei 6.015 prevê ampla capacidade registral –“O registro e a averbação poderão ser provocados por qualquer pessoa, incumbindo-lhe as despesas respectivas“ (art. 217)−, o disponente em título gratuito, inclusive, como se lê no art. 218: “Nos atos a título gratuito, o registro pode também ser promovido pelo transferente, acompanhado da prova de aceitação do beneficiado”. Em hipóteses particulares, pode disputar-se acerca de alguma restrição a essa amplitude: p.ex., para o registro de bem de família, a Lei prevê: “o instituidor apresentará ao oficial do registro a escritura pública de instituição, para que mande publicá-la na imprensa local e, à falta, na da Capital do Estado ou do Território” (art. 261);  ou ainda quando se trate do que se pode designar de solicitante samaritano, conjectura pouco provável de ocorrer, qual a de alguém que, encontrando um título caído ao solo, resolve, por filantropia ou talvez caridade, pleitear seu registro no ofício imobiliário.