Registro de desapropriação (décima-nona parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 351)

Des. Ricardo Dip

1.102. Prosseguindo no capítulo relativo ao registro da desapropriação de imóvel, examinaremos agora o tema da remessa obrigatória no processo judicial expropriatório, sobretudo para destacar a eficácia processual dessa remessa e seu reflexo no âmbito do registro imobiliário.

Lê-se no § 1º do art. 28 do Decreto-lei 3.365, de 1941: "A sentença que condenar a Fazenda Pública em quantia superior ao dobro da oferecida fica sujeita ao duplo grau de jurisdição".

Esse dispositivo preceitua a interposição da remessa obrigatória −reexame necessário, remessa ex officio, reexame oficial, quase recurso− sempre que a sentença, no processo de desapropriação, condenar a Fazenda pública (não se trata, pois, de qualquer sujeito ativo expropriante) a indenização superior a duas vezes o preço oferecido ao expropriando.

Assim enunciava o texto original do mencionado § 1º do art. 28 da Lei geral da desapropriação: "O juiz recorrerá ex officio (…)". O então vigente Código brasileiro de processo civil de 1919 falava em "apelação necessária ou ex officio" (art. 822), de maneira que, ao menos no plano da denominação, não se distinguiam os recursos e a remessa, discriminação que viria a salientar-se pela doutrina, apontando o caráter voluntário dos recursos.

Nosso Código de processo civil de 1973 −abandonando os nomes apelação necessária e apelação ex officio− elegeu a via descritiva da remessa: "Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença (…)" (caput do art. 475). Lia-se ainda no § 1º desse mesmo art. 475: "(…) o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los".

A matéria também foi objeto de disciplina no Código de processo civil de 2015 (seção III –"Da remessa necessária"− do capítulo XII –"Da sentença e da coisa julgada"− do título I –"Do procedimento comum"− do livro I da parte especial: "Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença"). Enuncia o caput de seu art. 496: "Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: I - proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público; II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal". Reitera o novo Código a previsão de que, "não interposta a apelação no prazo legal, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, e, se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á" (§ 1º do art. 496).

O Código de 2015 elenca hipóteses em que, a despeito do constante do caput de seu art. 496, não cabe a interposição da remessa necessária: "Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a: I - 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público; II - 500 (quinhentos) salários-mínimos para os Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público e os Municípios que constituam capitais dos Estados; III - 100 (cem) salários-mínimos para todos os demais Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público" (§ 3º do mesmo art. 496). E ainda: "Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em: I - súmula de tribunal superior; II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV - entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa" (§ 4º do art. 496).

Parece indisputável que não haja formação de coisa julgada, quando exigível a remessa necessária, senão depois que a sentença seja confirmada pelo tribunal (caput do art. 496 do Cód.pr.civ. de 2015), ou seja, a remessa tem efeito devolutivo e suspensivo.

Há aqui, contudo, alguns temas que têm relevo particular para a atividade do registro imobiliário.

Primeiro: se as regras dos §§ 3º e 4º do art. 496 do Código se aplicam ao processo de desapropriação.

Segundo: se do título judicial expedido para o registro da desapropriação for possível evidenciar a falta de interposição de cabível remessa obrigatória, deve o registrador proferir qualificação negativa?

Quanto ao primeiro tema, parece que deva prevalecer a regra especial do Decreto-lei 3.365, de maneira que não incidem, no processo judicial de desapropriação, as exceções que o Código de processo civil de 2015 instituiu acerca do cabimento da remessa obrigatória. É que a disposição especial prevalece sobre a geral posterior: "A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior" (§ 2º do art. 2º do Decreto-lei 4.657, de 4-9-1942). Reforce-se esse entendimento com a consideração da parte final do art. 41 do Decreto-lei 3.365: "As disposições desta lei aplicam-se aos processos de desapropriação em curso, não se permitindo depois de sua vigência outros termos e atos além dos por ela admitidos, nem o seu processamento por forma diversa da que por ela é regulada".

No que diz com o segundo tema, relativo à aferição da falta de interposição da remessa obrigatória nos casos em que a sentença, no processo de desapropriação, "condenar a Fazenda Pública em quantia superior ao dobro da oferecida" (art. 28 do Decreto-lei 3.365), parece que se deva distinguir: se o juiz enfrentou a matéria e entendeu incabível a remessa, não cabe ao registrador reapreciar o quanto já se decidiu expressamente na via judicial. Diversamente, se o juiz, na sentença, não examinou o tema −ou, com maioria de razão, se determinou a remessa, sem que se tenha cumprido sua determinação−, parece que compete ao registrador indicar respeitoso óbice, restituindo o título com fundamentada nota de qualificação negativa.

Cabe aqui observar, entretanto, que a remessa obrigatória −a despeito de o art. 28 do Decreto-lei 3.365 referir-se apenas à "Fazenda Pública", aplica-se às autarquias e às fundações públicas (parte final do inc. I do art. 496 do Cód.pr.civ.; já antes: Lei 9.469, de 10-7-1997), mas não aos concessionários do serviço público, às empresas públicas ou às sociedades de economia mista.