(da série Registros sobre Registros, n. 348)
Des. Ricardo Dip
1.098. Como o vimos na explanação anterior desta série, dedicando-nos ao capítulo sobre o registro da desapropriação de imóvel e, particularmente, acerca do processo judicial dessa desapropriação, a resposta do expropriando, nesse processo, apenas pode referir-se a (i) vícios de rito −vale dizer, vícios de forma, vícios processuais−, e (ii) ao valor do preço oferecido pelo expropriante, ou seja, ao valor da indenização pela perda da propriedade.
Entre esses vícios −elencados no art. 337 do Código de processo civil (Código este que se aplica, de modo subsidiário, ao processo judicial de expropriação: cf. art. 42 do Decreto-lei 3.365, de 1941)−, é da doutrina predominante possa o registrador, na tarefa de qualificação do título judicial correspondente, verificar (i) a inexistência da citação e (ii) a incompetência absoluta do juízo (a absoluta, note-se bem), sempre que uma e outra coisa não tenham sido objeto de específicas apreciação e decisão judiciais. Nestas hipóteses, o oficial do registro deve qualificar negativamente o título, restituindo-o, com nota devolutiva, ao apresentante.
Até aqui foi o que vimos.
Outros defeitos processuais alistam-se no referido art. 337 do Código de processo civil, quais sejam: (i) a incorreção do valor da causa; (ii) a inépcia da petição inicial; (iii) a perempção; (iv) a litispendência; (v) a coisa julgada; (vi) a conexão; (vii) a incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização; (viii) a convenção de arbitragem; (ix) a ausência de legitimidade ou de interesse processual; (x) a falta de caução ou de outra prestação que a lei exige como preliminar; (xi) a indevida concessão do benefício de gratuidade de justiça.
Nenhuma dessas deficiências formais no processo judicial de desapropriação pode ser objeto, ao menos de modo direto, de qualificação pelo registrador. Saliente-se: de modo direto. Por quê? Porque pode ocorrer que, sem apreciar e decidir acerca do vício processual, caiba ao registrador apontar alguma impossibilidade de inscrição por força exatamente desse vício: por exemplo, tratando-se de litispendência ou de coisa julgada −não reconhecidas pelo juízo da causa−, quando, anteriormente, já se tenha registrado um outro título de desapropriação do mesmo imóvel. Equivale a dizer: o registrador não qualificará negativamente o título pelo defeito direto de litispendência ou de coisa julgada, mas, isto, sim, pelo consequente dessa litispendência ou dessa coisa julgada, qual o de um registro precedente conflitante com o novo registro pretendido.
Também no que respeita à concessão do benefício da gratuidade judiciária, dispondo o vigente Código brasileiro de processo civil que esse benefício abrange "os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido" (inc. IX do § 1º do art. 98), não pode o registrador inibir a inscrição pleiteada no ofício imobiliário com um fundamento impugnatório do privilégio da gratuidade. Isto porque, o mesmo Código enuncia: "Na hipótese do § 1º, inciso IX, havendo dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade, o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer, ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais, a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento de que trata o § 6º deste artigo, caso em que o beneficiário será citado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se sobre esse requerimento" (§ 8º do art. 98), Então, só "após praticar o ato" é que o registrador "pode requerer" a revogação do benefício ou o parcelamento do valor do que se isentou de dispêndio.
Duas questões logo podem levantar-se acerca desse dispositivo do §8º do art. 98 do Código de processo civil. Primeira, a do sentido normativo dos termos "pode requerer": "(…) o notário ou registrador, após praticar o ato, pode requerer (…) a revogação total ou parcial do benefício ou a sua substituição pelo parcelamento". O problema está em saber se isto é uma faculdade ou um dever do oficial do registro. Pareceria tratar-se, à primeira vista, de mera faculdade. Mas a questão não aparenta ser tão simples, quando se considera que não se trata apenas de verbas constitutivas de emolumentos, senão que também de outras que integram as custas, cuja variado destino põe o registrador na situação de uma eventual responsabilidade solidária, nos termos do que dispõe o art. 134 do Código tributário nacional: "Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: (…) VI -os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício". Objetar-se-á que a regra do §8º do art. 98 do Código de processo civil exige "dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão de gratuidade", mas, no fim e ao resto, a «dúvida fundada» é uma categoria standard. Quando menos, risco há de a autoridade fiscal entender, em dados casos, caracterizar-se omissão do registrador. Que fazer? Parecerá discreto que o oficial do registro, entendendo não ser oportuno o requerimento para a revogação do benefício da gratuidade ou do parcelamento do benefício, consigná-lo por escrito, motivadamente, de maneira a esclarecer as razões pelas quais não avistou dúvida fundada para o pleito revocatório ou de parcelamento. E nada impede comunique o teor de seu entendimento ao juízo corregedor permanente do cartório.
A segunda questão empolgando a regra do referido §8º do art. 98 do Código de processo civil concerne à competência de um dado juízo para revogar ou, ao menos, alterar uma decisão de outro juízo de mesma escala. Diz a lei processual que o requerimento do oficial do registro, visando a revogar o benefício ou ainda a parcelar-lhe o valor correspondente, deve dirigir-se "ao juízo competente para decidir questões notariais ou registrais". Para logo, pensar-se-á que se trate aí de um juízo administrativo −ou seja, o da corregedoria permanente ou da diretoria do fórum (consoante a variedade dos direitos organizatórios das justiças estaduais e do Distrito federal)−, com a competência, pois, de alterar uma decisão de juízo contencioso.
A solução do tema não é isenta de dificuldades. De um lado, embora se queira admitir institua a lei ordinária uma hipótese de controle administrativo de uma decisão de jurisdição contenciosa, seria ainda preciso considerar, na sequência, a previsão constitucional vigente de que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (item XXXV do art. 5º da Constituição nacional de 1988). Desta maneira, caberia a via contenciosa para eventual impugnação do decidido pelo juízo administrativo: seria uma terceira competência ou se regressaria à primeira?
De outro lado, contudo, não se perca de vista que o benefício de gratuidade processual é matéria de jurisdição determinativa, bastando aqui extrair desta indicação a circunstância de que não há res iudicata material a seu respeito. Isto talvez recomendasse, com efeito, uma decisão na competência administrativa, sem excluir possível controle em jurisdição contenciosa.