Registro de desapropriação (oitava parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 340)

Des. Ricardo Dip

 

1.087. Como ficou dito, a desapropriação consiste, em princípio, numa transferência compulsória de bens ao poder público −ainda que o possa ainda ser em favor de autarquias ou de entidades nas quais se tenha delegado o poder de desapropriação−, no caso brasileiro sempre, também em princípio, mediante justa e prévia indenização em dinheiro.

Tenha-se em conta que há, pois, um caráter dúplice na desapropriação. Ela, por um primeiro aspecto, em acepção lexical, implica o perdimento de uma dada propriedade; mas, em matéria de compreensão e de interpretação do direito, vale muitíssimo uma conhecida referência de juristas anglo-saxões: never cite a dictionary as authority. É que, por um segundo aspecto e conexionado ao primeiro, a desapropriação é um meio aquisitivo de domínio, certo que toda transferência de bens importa sempre nesse relacionamento entre alguém que se destitui de uma propriedade e outrem que a adquire.

Calha apontar, contudo, uma distinção que corresponde à praxis jurídica. Ainda que se fale de comum em transferência compulsória na desapropriação, isto não significa que não se denomine também, ordinariamente, com o vocábulo «desapropriação» o caso em que ela se perfaça por meio de um negócio jurídico. Ou seja, uma coisa é a sujeição aflitiva do bem suscetível da desapropriação; outra coisa é que essa sujeição não possa ser objeto de um negócio celebrado com o titular do bem passível de expropriar-se. Se é certo dizer que o «acordo de vontades», na desapropriação, não é elemento substancial da transferência de bens, não menos certo é que pode ocorrer de um título negocial satisfazer o escopo do expropriante; tratar-se-á de um elemento acidental, mas que não deixa de indicar a peculiaridade de ser, então, matéria posta sob a regência do direito privado: a aquisição estatal, ainda que tenha à raiz um princípio administrativo-constitucional, termina por configurar-se como uma aquisição derivada e com escora no direito civil.

Pode, portanto, dar-se o quadro de uma sucessão de posicionamento do estado que, com seu ius imperii, inclina-se no sentido de impor a transferência de um dado bem, caso em que se aplica um regime de direito público, que, no entanto, termina por atualizar-se mediante um negócio no qual o estado se acomoda, de algum modo, a uma relação sob o regime do direito privado. Neste sentido, lê-se no art. 10 do Decreto-lei brasileiro 3.365,de 1941: "A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará".  

Na medida em que o estado é titular de um direito potestativo de desapropriar −vale por dizer, um direito que se estabelece pela só vontade (ou poder) do próprio estado−, sua contrapartida relacional não é, propriamente, a de um dever jurídico do expropriando, porque não tem ele a possibilidade de não satisfazer a potestade estatal. Diversamente, em vez de dever jurídico (em sentido próprio), há uma sujeição do expropriando, uma «necessidade fatal», um efeito «inelutável» −para aqui adotar as expressões de Manuel Domingues de Andrade−, efeito que se produz sem infringência jurídica possível.

Todavia, isto não significa dispensa de condições (substanciais e formais) para que a prestação sujeitada possa exigir-se licitamente, ainda que essa prestação, como já ficou dito, não esteja ela própria limitada a um processo coativo, seja de natureza administrativa, seja de caráter judicial, porque pode derivar de um acordo com o expropriante.

Sujeição, sim, mas sujeição condicionada, em linha de princípio, a que haja indenização pecuniária justa e prévia, e sujeição condicionada ainda a requisitos formais. Ponha-se a salvo, entretanto, a exceção dos acordos formados entre o expropriante e o expropriado.

1.088. Vejamos a situação específica do direito positivo brasileiro em vigor.

Vige entre nós, já se indicou na explanação anterior, o acima referido Decreto-lei 3.365, de 21 de junho de 1941, que é a lei geral da desapropriação no Brasil.

Garante a Constituição nacional de 1988 o direito de propriedade (inc. XXII do art. 5º), impondo-lhe atender à função social (inc. XXIII do mesmo art. 5º) −função esta que, de maneira maior, está em delimitar claramente o que é de um e o que é de outro−, admitindo-se, contudo, a expropriação: "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição" (inc. XXIV do referido art. 5º).

À luz dessa norma constitucional, pois, cabe à lei subconstitucional a disciplina da desapropriação que se justificará por necessidade ou utilidade pública, ou ainda por interesse social, sempre, no entanto, «mediante justa e prévia indenização em dinheiro», com ressalva das hipóteses de confisco.

Essa lei infraconstitucional a que se referiu o inciso XXIV do art. 5º da Constituição brasileira −lei que é matéria da competência privativa da União federal (inc. II do art. 22 da mesma Constituição)− já preexistia ao tempo em que se promulgou o Código político nacional de 1988.  Admitiu-se sua recepção, presente sua harmonia com a nova ordem constitucional (cf. STF: RE 245914 AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 29-6-1999). Não se interdita, contudo, que lei complementar autorize os estados membros da Federação brasileira (não seus municípios!) a "legislar sobre questões específicas" da desapropriação (par. único do referido art. 22).

Legislar sobre desapropriação −bem o observou José Carlos de Moraes Salles (o.c., p. 100 e 101)− não é o mesmo que declarar a desapropriação. Se expedir leis sobre desapropriação é matéria da competência da União −com a só ressalva de autorização, em lei complementar, para os estados legislarem sobre questões específicas da expropriação−, já agora declarar a desapropriação é da competência do presidente da República, dos governadores dos estados (e do Distrito federal), dos prefeitos municipais (art. 2º do Decreto-lei 3.365, de 1941: "Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal…"); e não falta mesmo, embora ocorrência muito rara (e criticada, v.g., por Seabra Fagundes), que caiba a declaração expropriatória expedida pelo poder legislativo, como se lê no art. 8º do Decreto-lei 3.365, de 1941: "O Poder Legislativo poderá tomar a iniciativa da desapropriação, cumprindo, neste caso, ao Executivo, praticar os atos necessários à sua efetivação".

Prosseguiremos.