(da série Registros sobre Registros, n. 341)
Des. Ricardo Dip
1.089. Prosseguindo no exame do capítulo referente ao registro da desapropriação imobiliária, tratemos agora do tema da declaração de utilidade pública para os fins expropriatórios.
A questão tem relevo para os registros, na medida mesma em que os oficiais têm atribuição para qualificar, ainda que limitadamente, os títulos de origem judicial.
O art. 2º do Decreto-lei 3.365, de 1941 −que é, como já ficou dito, a lei geral das desapropriações− assim enuncia: em seu caput: "Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios". É dizer que a União, os estados, os municípios e o Distrito federal (já agora não os territórios, que não subsistem na estrutura do estado brasileiro) são competentes para editar a declaração de utilidade pública, determinando, de maneira indivídua, a coisa objeto da expropriação. Adiante, o art. 6º do mesmo Decreto-lei dispõe: "A declaração de utilidade pública far-se-á por decreto do Presidente da República, Governador, Interventor ou Prefeito".
Saliente-se que essa normativa não se refere, porém, à possibilidade de um município desapropriar bem que seja de domínio de outro município, ainda que se trata de um bem situado no território do município expropriante. É que os municípios estão em situação de igualdade jurídica na hierarquia constitucional, não se admitindo, pois, o exercício de uma suposta sujeição de um a outro. Situação símile é a de um dos estados membros em relação a outro, incluídos os bens de município deste outro.
Até aqui não se avista problema a enfrentar-se pelo registrador. Diversamente, o § 2º do referido art. 2º do Decreto-lei 3.365 −com a redação que lhe deu a Lei 14.620/2023 (de 13-7)−, ao indicar que "será exigida autorização legislativa para a desapropriação dos bens de domínio dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal pela União e dos bens de domínio dos Municípios pelos Estados", apresenta uma questão de interesse para a praxis registral: deve o oficial do registro imobiliário exigir o título da autorização legislativa quando se trate da desapropriação de bens públicos pela União ou de bens de domínio dos municípios pelo estado?
Não parece haver dúvida de que, tanto tenha sido apreciada e decidida a questão na via jurisdicional (demanda judicial de desapropriação), não caiba já seu exame pelo registrador de imóveis. Todavia, controverso é que lhe caiba esse exame quando o título judicial nada referir acerca do tema da autorização legislativa. Parece mais provável que não compita ao registrador exigir, ainda nesta última hipótese, que se exiba ou, ao menos, se indique a autorização legislativa, porque não prevê a normativa de regência que essa autorização seja título acessório para os fins de registro da aquisição em tela.
Símile situação parece também sugerir, por ser mais provável, não caiba ao registrador aferir a caducidade da declaração de utilidade pública, matéria de que trata o art. 10 do Decreto-lei 3.365: "A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará (…)". Tampouco aparenta caber ao oficial do registro verificar o decurso do interregno previsto na segunda parte desse mesmo art. 10: "(…) somente decorrido um ano, poderá ser o mesmo bem objeto de nova declaração".
Ainda a respeito da declaração de utilidade pública, dispondo a lei que "ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública" (art. 9º do Decreto-lei 3.365), também isto, por maioria de razão, é vedado aos oficiais de registro.
Uma outra questão está em saber se o fato de haver uma declaração de utilidade pública relativa a dado imóvel impede sua alienação ou oneração pelo titular do direito dominial, o que, se for caso de admitir, imporia ao registrador de imóveis o dever de qualificar negativamente os títulos pelos quais um legitimado tabular pretendesse transferir ou onerar seu prédio, tanto que se expedisse uma correspondente sua declaração de utilidade pública.
Pode talvez discutir-se a admissibilidade de averbar-se a existência dessa declaração no registro de imóveis. Talvez pensaria recomendar-se esta averbação, para atender ao interesse do tráfico jurídico; mas com o ato de averbamento estaria, não de direito, mas de fato, travada a disposição do imóvel, com ofensa da garantia constitucional. Essa averbação, pois, não tem amparo legal, se bem que, ultimamente, quando se passou a entender que podem criar-se princípios (que alguém designou "princípios tupiniquins") depois de já construído o principiado, não tem faltado um possível aceno ao novidadismo do "princípio da concentração", do qual também já se disse (com impiedade) servir para tudo, até para justificar o registro de papel de embrulho. Assinale-se que, isto sim, a lei prevê o cabimento de inscrever-se a imissão provisória na posse do imóvel ("A imissão provisória na posse será registrada no registro de imóveis competente" -§ 4º do art. 15 do Decreto-lei 3.365; também inc. I do § 5º do art. 176-A da Lei 6.015, de 1973). Parece mais impiedosa ainda ser a modernização da antiga sentença francesa noblesse oblige; agora se fala na compreensão de que émolument oblige…
Mas se esse referido averbamento da declaração de utilidade pública é discutível, o que decerto não parece duvidar-se é de que essa declaração não impeça a alienação ou a oneração do imóvel a que corresponda. Pode dizer-se pacífica a doutrina que recusa esse efeito de indisponibilidade atrelado ao só fato da declaração de utilidade pública. Ensina, a propósito, José Carlos de Moraes Salles: "(…) mesmo depois de editada a declaração, mas antes que a desapropriação se aperfeiçoe, o proprietário do bem expropriando não perde essa condição" (o.c., p. 108; o mesmo autor invoca o magistério cônsono de Eurico Sodré, Hely Lopes Meirelles e Seabra Fagundes).
Uma última questão neste passo: se houver, para uma dada expropriação, concomitância de interesses entre duas pessoas políticas, tem-se entendido prevalecer a de maior hierarquia constitucional (p.ex., a União em relação ao estado membro e ao município; o estado relativamente ao município), É doutrina de Moraes Salles, que remete a julgado do STF (RDA 168/258).