Registro de legado, partilha e adjudicação (segunda parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 271)

                     Des. Ricardo Dip

 

  1. Conforme já se indicou, a Lei 6.015, de 1973, prevê o registro stricto sensu “dos atos de entrega de legados de imóveis, dos formais de partilha e das sentenças de adjudicação em inventário ou arrolamento quando não houver partilha” (item 25 do inc. I do at. 167). Depois de examinar o registro dos atos de legados (item 950, retro), dizemos agora, brevemente, do registro dos formais de partilha e, na ausência de partilha nos inventários e arrolamentos, do registro das sentenças de adjudicação.

Revisitemos noções já comumente sabidas, mas cujo revolvimento permite novas perspectivas.

Comecemos pelo formal de partilha, documento de origem judiciária, título, em acepção formal, que instrumenta o título em sentido material que é a partilha nas sucessões mortis causa.  Distinguem-se, pois, de um lado, a partilha −que é uma causa jurídica (por isso mesmo, a partilha, em rigor, é o objeto do registro predial stricto sensu)− e o formal de partilha, que é o veículo ou instrumento expressivo dessa causa.

Diz o Código civil brasileiro de 2002 que se dá a sucessão ratione mortis “por lei ou por disposição de última vontade” (art. 1.786), mas tanto aberta essa sucessão, transmitindo-se a herança, “desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários” (art. 1784), deferindo-se o patrimônio sucedido, todavia, “como um todo unitário (caput do art. 1.791), de tal modo que “até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio” (par. único do art. 1.791). “Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos (…)” (art. 1.788 do Cód.civ.), observada a ordem da vocação hereditária (art. 1.829: descendentes, ascendentes, cônjuge sobrevivente, colaterais −cabendo considerar, a propósito, as regras legais de concorrência−, e no caso de herança vacante, o município, o Distrito federal e União −art. 1.822). São herdeiros necessários (também ditos sucessores legítimos) os descendentes, os ascendentes e o cônjuge supérstite (art. 1.845), “aos quais herdeiros pertence de pleno direito, a metade dos bens da herança” (art. 1.846), metade que constitui o que se designa por legítima. Ressalvada essa legítima –“A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento” (§ 1º do art. 1.857)−, toda pessoa capaz poderá dispor, por meio de testamento, acerca da destinação post mortem de seus bens (caput do art. 1.857).

Desse rápido sumário do cipoal de normas relativas à sucessão mortis causa, cabe aqui extrair, de modo pontual, a possibilidade de que diversas pessoas sejam co-partícipes de uma herança, quer na condição de herdeiros legítimos, quer na de herdeiros testamentários, na dúplice situação até mais (“O herdeiro necessário, a quem o testador deixar a sua parte disponível, ou algum legado, não perderá o direito à legítima” −art. 1.849 do Cód.civ.). E é exatamente para solver a simultaneidade de direitos sobre um mesmo patrimônio hereditário que se destina o instituto da partilha da sucessão mortis causa.

Sempre que morre uma pessoa  −mormente se deixa bens−, cabe um correspondente processo de inventário, dando ensejo, na via judicial, a uma ação de partilha. Consiste o inventário no alistamento de tudo quanto possuía o autor da herança ao tempo de sua morte (assinale-se que também as dívidas, as coisas litigiosas, até mesmo objeto de penhora, de arresto, de sequestro, devem ser atraídas ao inventário −cf. inc. IV do art. 620 do Cód.pr.civ.bras.), mas a esse alistamento ou arrolamento de bens se junta a finalidade de distribuí-los entre os herdeiros, o que implica a necessidade de descrever, avaliar, liquida débitos e partilhar (dividir ou distribuir) esses bens. Uma interessante referência de Luiz Antonio da Costa Carvalho, que foi professor, no Rio de Janeiro, da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, lembra, com apoio em doutrina anterior, que não se descrevem no inventário os vestidos ou roupas de uso, a cama e o leito da viúva, o anel ou joia nupcial, porque esse bens “se presumem doados, não fazem parte da herança dividenda e se consideram como alheios dela” (Curso theorico-pratico de direito judiciario civil, 1937, vol. 3º, p. 169).

A ação de inventário e de partilha, cujo processo deve instaurar-se, segundo o Código de processo civil brasileiro e vigor, dentro no prazo de dois meses contados da abertura da sucessão (arts. 611 e 615), deve ser, em princípio, incumbência “de quem estiver na posse e na administração do espólio…” (art. 615), mas isto não exclui a legitimidade concorrente de outras pessoas para a instauração do inventário, que pode ser ensejada pelo o cônjuge ou companheiro supérstite, o herdeiro, o legatário, o testamenteiro, o cessionário do herdeiro ou do legatário, o credor do herdeiro, do legatário ou do autor da herança, o Ministério Público, se houver herdeiros incapazes, a Fazenda Pública, quando tiver interesse na sucessão, o administrador judicial da falência do herdeiro, do legatário, do autor da herança ou do cônjuge ou companheiro supérstite (art. 616).

Saliente-se que o inventário pode ser ainda instaurado em via notarial, desde que os herdeiros −legítimos e testamentários− sejam todos capazes e estejam concordes com a divisão da herança (ou até com sua adjudicação -cf. § 1º do art. 610 do Cód.pr.civ.). O instrumento correspondente há de ser a escritura pública, impondo a lei que todos os clientes (“partes interessadas” −sic) estejam assistidos “por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial” (§2º do mesmo art. 610 −preceito que, em verdade, parece desvalorizar a figura e a função do notário).

No processo judicial de inventário, realizadas as citações exigidas em lei (art. 626 do Cód.proc.civ.bras.) e ouvidas as manifestações das partes e da fazenda pública (arts. 627 a 629), o juiz, depois de apreciar e julgar eventuais impugnações (art. 630), decidirá sobre a avaliação dos bens (arts. 630 a 638), determinará, quando o caso, sua colação (art. 639 a 641) e habilitará credores, decidindo sobre o pagamento das dívidas (arts. 642 a 646), passando, então, a deliberar sobre a divisão dos bens: “(…) o juiz facultará às partes que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, formulem o pedido de quinhão e, em seguida, proferirá a decisão de deliberação da partilha, resolvendo os pedidos das partes e designando os bens que devam constituir quinhão de cada herdeiro e legatário” (art. 647), observando-se as seguintes regras para a partilha: a da superior igualdade possível de valor, natureza e  qualidade dos bens; a da prevenção de litígios ulteriores; e a da melhor comodidade dos sucessores (art. 648). Separados os bens insuscetíveis de divisão cômoda (art. 649) −bens esses que deverão ser objeto de licitação entre os interessados ou serem submetidos a alienação judicial, com partilha do preço−, caberá, então, ao partidor judicial elaborar um esboço da partilha, observando as dívidas satisfeitas, a meação do cônjuge, a meação disponível e os quinhões hereditários (art. 651). Ouvidos os interessados (art. 652) e resolvidas eventuais reclamações, a partilha será lançada aos autos, dela devendo constar um auto de orçamento e a folha de pagamento de cada sucessor (art. 653); esse auto deve assinar-se pelo juiz do processo e pelo escrivão da secretaria. Na sequência, recolhido o imposto de transmissão −ou exibida certidão ou informação negativa de débito tributário−, o juiz proferirá sentença acerca da partilha (art. 654). Só após o trânsito em julgado dessa sentença é que, por fim, expedir-se-á o formal de partilha, integrado pelo termo de inventariante e o título de herdeiros, a avaliação dos bens relativos ao quinhão do herdeiro, seu pagamento, a quitação dos impostos, a sentença e a certidão de seu trânsito em julgado (art. 655).

O formal de partilha, diz ainda o Código de processo civil brasileiro, poderá substituir-se “por certidão de pagamento do quinhão hereditário quando esse não exceder a 5 (cinco) vezes o salário-mínimo, caso em que se transcreverá nela a sentença de partilha transitada em julgado” (par.único do art. 655).

Por fim, admite a regulativa processual brasileira a retificação da partilha nos próprios autos do inventário e sem embargo do trânsito em julgado da sentença correspondente, desde que nisto convenham todos os interessados. O suposto é a existência de “erro de fato na descrição dos bens”, prevendo a lei possa “o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, a qualquer tempo” corrigir as inexatidões materiais da partilha (art. 656).

De modo mais gráfico, lê-se no Código de processo civil de 2015: “São sujeitos à sobrepartilha os bens: I - sonegados; II - da herança descobertos após a partilha; III - litigiosos, assim como os de liquidação difícil ou morosa; IV - situados em lugar remoto da sede do juízo onde se processa o inventário” (art. 669).

O processo de sobrepartilha −ou seja, de uma nova divisão dos bens hereditários por sobrevinda de conhecimento de fato que a justifique (cf. o referido art. 669 do Cód.pr.civ.)− seguirá as regras do processo de inventário e de partilha (art. 670 do Cód.pr.civ.) e correrá nos autos do inventário dos bens do de cuius (par.único do art. 670), ensejando-se a formação do título de formal de sobrepartilha.

Prosseguiremos.