Registro de legado, partilha e adjudicação (primeira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 270) 

                     Des. Ricardo Dip

 

  1. O item 25 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, contempla o registro stricto sensu “dos atos de entrega de legados de imóveis, dos formais de partilha e das sentenças de adjudicação em inventário ou arrolamento quando não houver partilha”.

 

Essa norma abrange três hipóteses de sucessão, não qualquer (como se dá na compra e venda, na dação em pagamento, na doação, etc.), mas de sucessão hereditária, ou seja, todas essas três hipóteses têm o traço comum de serem a substituição subjetiva numa relação jurídica em que um novo sujeito continua a titularidade de um anterior, morto, o de cuius.  Temos, portanto, ao lado de um conceito amplo de sucessão (e o mesmo pode afirmar-se das equivalentes noções de transferência ou transmissão de titularidades jurídicas), uma acepção restrita, que é a mais rotineiramente usada e refere-se ao direito das sucessões −i.e., a sucessão hereditária.

 

Tanto se vê, a primeira dessas noções, a mais ampla, abrange os atos inter vivos e os mortis causa; e a segunda, só estes últimos. É frequente a restrita de sucessão a título universal ou transmissão de uma universalidade, vale dizer, a transmissão do patrimônio integral de uma pessoa que morre. Mas essa equivalência não é exata, porque há transferências a título universal alheias do campo do direito das sucessões (p.ex., a de um estabelecimento comercial, dando-se aí que uma pessoa jurídica aliene a integralidade ou universalidade de seu patrimônio; cf., a propósito, Teoria geral e sucessão legítima, 1980, do saudoso des. Walter Moraes).

 

Há outro motivo pelo qual não parece convir a equipolência entre a sucessão a título universal e a sucessão hereditária. É que esta, além da herança (designação que se dá ao patrimônio de uma pessoa assim que ela morre), abarca também a possibilidade de transferência de bens singulares, ou seja, pode compreender uma transmissão a título singular, o que se dá mediante o legado. Todavia, ainda que, em sentido lato, a herança possa abranger o legado, o fato é que este é definidamente um destaque de bens que, por sua destinação, estão excluídos da atribuição do patrimônio universal (ou herança em acepção estrita).

 

Consiste o legado, essencialmente, numa disposição testamentária a título singular. A sucessão mortis causa pode ser legitimária, testamentária e contratual (esta, a do pacto sucessório, vedada em geral no Brasil, nos termos do art. 426 do vigente Código civil −“Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”−, mas que se admite, em caráter excepcional, na hipótese prevista no art. 2.018 do mesmo Código, ao cuidar-se da partilha em vida: “É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários”). O legado, como ficou dito, é sempre uma hipótese de sucessão testamentária, embora nela caiba compreender o codicilo, acolhendo-se, pois, o que se poderia chamar de “pequeno legado” (vidē o art. 1.881 do vigente Código civil brasileiro: “Toda pessoa capaz de testar poderá, mediante escrito particular seu, datado e assinado, fazer disposições especiais sobre o seu enterro, sobre esmolas de pouca monta a certas e determinadas pessoas, ou, indeterminadamente, aos pobres de certo lugar, assim como legar móveis, roupas ou joias, de pouco valor, de seu uso pessoal”).

 

Quanto a seu conteúdo, o legado há de ser uma disposição a título singular, ou seja, com determinação objetiva; mas é de assinalar que essa exigível determinação não significa especificação ou individualização (cf. art. 1.915 do Cód.civ.bras.); basta, para caracterizar o legado, que se discrimine, no título testamentário, “o objeto em relação ao universum ius hereditatis” (Walter Moraes). Pode o objeto do legado ser coisa móvel, crédito, quitação de dívida, alimentos, usufruto, dinheiro, imóvel; assim, em palavras de Carlos Roberto Gonçalves, “toda vez que se deixa certo objeto, não o acervo ou parte alíquota do mesmo, toda a vez que a sucessão se verifica a título particular, é de legado que trata” (o.c., vol. 7, p. 367); não se exige especialização: um exemplo histórico de fins do século passado: cerca de 100 mil livros compunham, na cidade do Rio de Janeiro, a biblioteca pessoal do Monsenhor Emilio Silva, que deixou em legado, para a Diocese de Anápolis, mil livros, escolhidos pelo legatário após a morte do autor da herança).

 

Se o bem não estiver sujeito a condição suspensiva (cf. a parte final do art. 1.923 do Cód.civ.), o legado confere o direito de domínio desde a abertura da sucessão (caput do art. 1.923: “Desde a abertura da sucessão, pertence ao legatário a coisa certa…”), abertura que se dá com a morte do autor da herança; todavia, não por isto, e diversamente do que ocorre com o herdeiro (art. 1.784 do mesmo Código), o legatário não entra prontamente na possessão direta da coisa legada (§ 1º do art. 1.923: “Não se defere de imediato a posse da coisa, nem nela pode o legatário entrar por autoridade própria”), tendo de recebê-la, de comum, em processo de inventário. Lê-se, com efeito, no art. 737 do atual Código brasileiro de processo civil que o legatário pode requerer a publicação do testamento particular (caput) e do codicilo (§ 3º do mesmo art. 737; cf. ainda o art. 1.877 do Cód.civ.: “Morto o testador, publicar-se-á em juízo o testamento, com citação dos herdeiros legítimos”), assim como o requerimento de inventário e partilha (inc. III do art. 616 do Cód.pr.civ.). E lição de Clóvis Beviláqua a de que caibam ação reivindicatória ou ação confessória, se o legado for coisa certa ou direito real, suposto esteja o bem em poder de terceiro. Por evidente, enquanto dependa do implemento de condição suspensiva, o legatário, não tendo adquirido ainda o direito ao legado, não tem ação alguma para o empossamento da coisa.

 

Para os fins do registro imobiliário, há necessidade de um título de entrega do legado. Tratando-se de legado de imóvel, esse título pode ser uma escritura notarial −quando os herdeiros ou o inventariante consentem na entrega do bem ao legatário. Ou pode ser um formal de partilha (cf. os arts. 647 e 653, inc. I, a, do Cód.pr.civ.), na hipótese de proceder-se até final no inventário dos bens (isto, além dos casos em que há necessidade de individualizar os bens legados, ocorre sempre que caiba aferir o passivo do espólio); podem admitir-se, em vez do formal de partilha, certidões e mandados judiciais (vidē Marcus Andrade, in VV.AA., Lei de registros públicos comentada, 2014, coord. José Manoel de Arruda Alvim, Alexandre Laizo Clápis e Everaldo Augusto Cambler). De resto, nas hipóteses de ações reivindicatória ou confessória, emite-se, ao final, carta de sentença.

 

Todos esses títulos formais podem amparar, com a observância de seus correspondentes requisitos, o registro da entrega do legado, entrega esta que confirma o título em sentido material (i.e., o próprio legado, ou seja, a disposição testamentária).

 

Assinale-se, por fim, que o Código civil brasileiro, ao tratar do legado de coisa alheia certa, adotou a regra de sua ineficácia (art. 1.912: “É ineficaz o legado de coisa certa que não pertença ao testador no momento da abertura da sucessão”). Isto não implica, entretanto, devesse a coisa legada ser do domínio do testador ao tempo da elaboração do testamento: o que importa é saber se, na data da abertura da sucessão, o bem era de propriedade do testador. Diversamente, cuidando-se de bem genérico, lê-se no art. 1.915 do mesmo Código: “Se o legado for de coisa que se determine pelo gênero, será o mesmo cumprido, ainda que tal coisa não exista entre os bens deixados pelo testador”. Dessa maneira, se o testador deixar em legado um imóvel, sem individualizá-lo, e, à sua morte, não for dono de imóvel algum,  caberá “ao testamenteiro comprar um, com recursos financeiros do espólio, a fim de satisfazer a disposição testamentária” (Carlos Roberto Gonçalves).

 

por meio (i) da traditio de um legado, (ii) da partilha do monte hereditário e (iii) da atribuição de bens hereditários sem essa partilha.