Registro de permuta e de promessa de permuta (excurso sobre a «tokenização» imobiliária -concledutur)

(da série Registros sobre Registros, n. 324) 

                               Des. Ricardo Dip

 

1.057.           Façamos agora um breve resumo conclusivo −mas também insistente em alguns pontos− acerca do tema das tokenizações imobiliárias.

Vimos que, em vez do singular «tokenização» de imóvel, melhor parece falar-se de «tokenizações», no plural, não só para atender às já realizadas variedades desta prática, mas também para prevenir possíveis (para não dizer prováveis) novas formas de tokenizar imóveis.

Restringimos nossas considerações a duas das maneiras já usadas para a tokenização imobiliária, e não apenas efetivadas no Brasil, mas em campo mais extenso (p.ex., tal como é fácil verificar pela rede informática, na Argentina, na Espanha, na França, etc.)

Valemo-nos da ocasião propiciada pelo Provimento 38/2021 da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul −ensejando que o tema viesse a calhar com o do registro da permuta, de que estávamos a tratar nesta série "Registro sobre Registros"−, e examinamos os interessantes estudos de Celso Maziteli Neto e Leonardo Brandelli (Blockchain e o registro de imóveis) e de Sergio Jacomino e Adriana J. Unger (NFT's −a tokenização imobiliária e o metaverso registral), além de considerarmos palestra proferida em congresso realizado em São Luís, capital do Estado do Maranhão.

Terminamos por frisar, reiteradamente, o louvável intento da Corregedoria da Justiça gaúcha na edição do aludido Provimento 38/2021, sem, contudo, deixar de referir o que nos pareceu de frustrâneo nesta regulativa. Assim como reconhecemos o valor dos apontados estudos doutrinários, embora impugnando-lhes os fundamentos positivistas. E, por fim, indicamos objeções às propostas práticas que, em complementação do Provimento da Justiça do Rio Grande do Sul, sugeriram-se no congresso realizado no Maranhão.

1.058.           Em síntese, descrevemos dois modos de tokenização imobiliária. A um, demos uma designação latina: duplicatio immobilis −duplicação de imóvel−, para assim atender à ideia de uma réplica digital de um só imóvel.

Essa duplicatio immobilis pode examinar-se sob a perspectiva de um jogo, de uma fantasia, à maneira como, no plano lúdico, já é antigo divertimento infanto-juvenil o chamado "Banco imobiliário". Trata-se de criar uma fantasia ou quantas fantasias a imaginação criadora permitir. Com uma diferença, porém, em relação ao mero jogo: a possibilidade de produzirem-se rendimentos reais com a alienação de tokens.

O segundo modo de tokenização que referimos, demos-lhe o título exitus tabularum, porque se trata, com efeito, de uma evasão ou fuga do sistema formal (ou central) de aquisição e oneração de imóveis. Não se cuida aí, pois, da mera invenção de um mundo predial paralelo, mas, em rigor, da redução −ainda que possa dar-se temporariamente−, da redução, repete-se, dos negócios imobiliários a um âmbito extratabular.

As críticas que foram dirigidas a essa modalidade de tokenização por Maziteli e Brandelli e Jacomino e Unger são, no geral, acertadas, em que pese, a nosso ver, a algumas equivocações, como a de referência ao "registro de direitos" (na perspectiva terminológica anglo-saxã) e a da afirmação de um suposto caráter estatal do registro público. O problema mais agudo que se vê nessas críticas −com cujas conclusões se pode ficar, assim ficou dito− está na restrição de seus fundamentos ao direito posto. Em outras palavras: enquanto a lei vigente for a que é, essas críticas estarão de todo adequadas, mas elas perderão seus pilares se norma oposta se estabelecer.

Bem se vê que o tema supera o campo da tokenização, pois leva ao exame do confronto entre o voluntarismo racionalista, de um lado, e o intelectualismo realista, de outro. Ou seja, ali, voluntas legem facit −a vontade (de quem manda) faz a lei, sem mais limites que os postos e dispostos pela mesma vontade de quem manda; não importa que se trate do governante −quod principi placuit, legis habet vigorem (o que agrada ao príncipe, tem valor de lei)− ou de todo o povo: lex est quod populus iussu (lei é o que o povo manda). No voluntarismo, o bem, o mal, o justo, o injusto, assim o são porque e apenas porque um mandato ou preceito de um legislador decidem que o sejam.

Diversamente, no intelectualismo realista dá-se o critério anterior do objetivismo moral, de maneira que o bem e o justo, o mal e o injusto são assim por si próprios, por sua própria realidade, sem que haja necessidade (embora possam convir) de mandatos ou preceitos de um legislador humano.

No que se refere, especificamente, às notas e ao registro imobiliário instituídos no Brasil, a questão pode resumir-se em saber se sua natureza histórica −é dizer, os fundamentos que os constituíram, singularmente, ao largo de muitas gerações, a ponto de reconhecerem-se partícipes da família do notariado latino−, repete-se: é preciso saber se a natureza histórica que deu fisionomia às nossas notas e aos nossos registros públicos são um dado de realidade que deve admitir-se, por suposto irrecusável, por nossos legisladores, ou se, ao revés, nada disso, ainda que anterior, é superior à vontade legislativa.

Em outros termos: há uma tradição a resguardar ou não há? O notariado brasileiro e, com ele, nosso registro são herdeiros do patrimônio dos que, já no século XIII, eram os notarii publici nos países de forte tradição românica (Espanha, Itália, sul da França), ou nosso notariado não tem tradição, é só o resultado da imaginação de legisladores pátrios?

As respostas a estas questões são cruciais, porque, se não houver um parâmetro anterior e superior ao estado legislativo para definir que coisas são o notariado e o registro de imóveis, nada pode opor-se às livres fantasias que os podem equivaler a um departamento burocrático ou a uma loja para a venda de aparas de papel.

Este é o ponto: a tokenização imobiliária maltrata a natureza mesma das notas e dos registros, malfere a ordem tradicional que, no Brasil, constitui o exitoso sistema formal de transmissão imobiliária. Assim, não se trata só de essa tokenização afastar-se da normativa em vigor, mas, sim, de que desordena as vias que já se confirmaram, pela história, propícias ao bem comum.