(da série Registros sobre Registros, n. 323)
Des. Ricardo Dip
1.054. Conforme ficou dito na exposição anterior, durante congresso realizado na cidade São Luís, um eminente estudioso gaúcho indicou duas práticas que foram –ou, a seu juízo, deveriam ser− adotadas quanto ao ingresso da «tokenização» no registro de imóveis. A primeira dessas práticas é a da averbação na matrícula do imóvel dos negócios jurídicos dos tokens realizados no ambiente virtual (quer dizer, por meio dos smart contracts). A segunda dessas sugeridas práticas diz respeito à obrigação de contratar-se uma nova permuta, a fim de que as negociações digitais se reduzam, derradeiramente, ao sistema formalizado.
Para logo, essas práticas não estão indicadas no Provimento 38/2021 da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, sequer implicitadas nesse mesmo Provimento. São apenas sugestões provenientes de um ilustre estudioso e que põem à mostra a laudável intenção do que se pode dizer seja um «retorno aos registros» (reditus ad tabulas) da prática externa de negociações imobiliárias resultante da «tokenização» enquanto exitus tabularum −fuga dos registros.
1.055. Embora caiba reconhecer, pois, como ficou acima referido, o quanto de louvável haja na intenção desse reditus ad tabulas, alguns problemas parecem interpelar as sugestões propostas pelo nobre estudioso gaúcho.
Vejamos.
Aconselha ele a averbação dos negócios jurídicos que, relativos aos «tokens«, venham a realizar-se no mundo digital (mediante a técnica das blockchains).
Já nisto parecem prontamente avistáveis alguns problemas a enfrentar.
O primeiro está em que negócios imobiliários inter vivos −sejam de aquisição, sejam de oneração− são suscetíveis, segundo a normativa registral vigente, de registro em sentido estrito (inc. I do art. 167 da Lei 6.015/1973). Assim, de duas, uma: ou bem se admite que esses negócios realizados no ambiente digital não têm validade e eficácia real, e, pois, para que se tornem plenamente jurídicos, devam ser registrados stricto sensu e não averbados; ou bem, e diversamente, reconhece-se sua validade e eficácia real no ambiente virtual, caso em que não se sabe qual a finalidade de suas averbações no registro de imóveis.
O segundo desses apontados óbices é relativo, mas não por isto deve ser desconsiderado. Supõe-se que a averbação das negociações com os tokens na via digital deve preceder-se de qualificação registral, e entre o que se deve controlar pelos registradores está a observância do que dispõe o art. 108 do Código civil: "Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País". Conceda-se que nem todos os casos possíveis dirão respeito a negócios cujo valor supere 30 vezes o maior salário mínimo vigente no Brasil, mas, novamente, ou o registrador aceita todos os smart contracts −o que implica dar às correspondentes averbações o caráter de mera publicidade de negócios realmente válidos e eficazes à margem de seu ingresso no ofício imobiliário−, ou, ao revés, qualifica os títulos à luz do mencionado art. 108 do Código civil, e, pois, parece que a eficácia real do negócio digital nasceria, consequentemente, da inscrição registral, e, de novo, repõe-se o problema: haveria de realizar-se essa inscrição mediante o registro stricto sensu.
O terceiro dos problemas que podem aqui apontar-se quanto à sugestão de averbarem-se os negócios digitais imobiliários −isto é, a «tokenização»− está em que, admitida a averbação de mera notícia, o registrador não haveria de controlar a observância da preferência aquisitiva (assim, no Código civil, o quanto se prevê no art. 504: "Não pode um condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se outro consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino, a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de cento e oitenta dias, sob pena de decadência"). E, outra vez, suposto que se trate de aquisição pelo modo previsto na lei nacional de regência −qual o do registro ("Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis" −art. 1.245 do Código civil)−, não se poderia pensar em simples averbação dos negócios de que se trata aqui.
Pense-se ainda na hipótese de um proprietário tabular −em que pese à «tokenização» do imóvel objeto− negociar simultaneamente pelos meios ortodoxos. Caberá ao registrador controlar a disponibilidade imobiliária também à luz do que sucede em paralelo no ambiente digital?
São problemas estes que, é certo, pode a lei, nem ou mal, mal ou bem, vir a resolver. Mas até que isso emerja −se é que venha a ocorrer−, as averbações propostas parecem conspirar em desfavor da segurança jurídica.
Tampouco parece que a edição de normas administrativo-judiciais acerca dessas averbações possa trazer segurança, porque essas normas, destinadas diretamente aos correcionados, não podem, em rigor, impor-se erga omnes, ou seja, não podem instituir obrigações a terceiros alheios dos quadros das instituições registrais.
1.056. A segunda proposta que se ofereceu e sustentou-se no aludido Congresso de São Luís foi a de prever-se, num primeiro contrato de permuta de imóvel por tokens, a obrigação de uma segunda permuta, que teria, pois, o escopo de retornar a totalidade das negociações ao sistema formal de registro imobiliário.
Diga-se outra vez: trata-se de escopo de todo louvável, mas que não frui de previsão legal.
Além disto, não se vê muito claramente por que haveria de ser um segundo negócio de permuta, pois as negociações no interregno entre o exitus e o reditus poderiam ser de variada tipologia obrigacional.
Concluiremos na próxima explanação.