Registro de usucapião (quarta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 282)

Des. Ricardo Dip

974. Continuamos aqui a expor sobre o tema do registro da usucapião (item 28 do inc. I do art. 167 da Lei 6.015), versando de maneira específica a formação do título correspondente na via extrajudicial, conforme o disposto no art. 216-A da mesma Lei 6.015.

O processo extrajudicial de usucapião constitui uma descendência de seu correlato judicial, e é fácil verificar o espelhismo das etapas de um e de outro. Isto já pode avistar-se com a exigência de “requerimento do interessado” para que se instaure o processo na via extrajudicial, o que guarda correspondência com a petição inicial do processo no judiciário, embora, de maneira mais estendida, também possa o tema considerar-se aqui do ângulo da observância da rogação ou instância para a prática, de comum, de qualquer dos atos de inscrição imobiliária.

Calha, entretanto, indicar uma peculiaridade: os atos de registro, ordinariamente, não exigem solicitação escrita, mas, quanto ao processo extrajudicial de usucapião, tem-se entendido que o requerimento para que se instaure deva ser literal, já por força do apontado espelhismo com o processo judiciário, já, ainda, à conta de a regra do art. 15 do Código de processo civil de 2015 endossar a incidência, no processo extrajudicial da usucapião, dos dispositivos referentes à petição inicial do processo no judiciário (sobretudo, art. 319 do mesmo Código), de maneira que caiba exigir, também quanto ao requerimento do processo extrajudicial da usucapião, os requisitos do endereçamento, da individualização e especialização das “partes” (melhor aqui se diga: “interessados”), da enunciação dos fatos e fundamentos jurídicos do pedido, do valor da “causa”, da indicação das provas que se pretendam produzir e, por evidente, do pedido, com sua especificação (vidē incs. do art. 319 do Código).

Esse art. 319 do Código processual civil de 2015, diversamente do que previa o Código de 1973, não alista o requerimento de citação entre os requisitos da petição inicial. Parece que a doutrina controverte acerca de sua necessidade: o saudoso mestre José Manoel de Arruda Alvim considera esse requerimento inócuo, por sua obviedade; Henrique Ferraz anuncia, em contrário, para o processo extrajudicial de usucapião, serem necessários os requerimentos de notificação dos interessados certos e de intimação dos incertos (por edital) e da Fazenda pública. Abstraído aqui o tema da competência legislativa, aponte-se que o Provimento 65/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, ao elencar os requisitos do pedido do processo extrajudicial de usucapião, não se refere ao requerimento de notificação dos interessados (art. 3º). Não parece, e toda a sorte, convenha sacralizar um requisito que a lei não afirma expressamente ser essencial, nada obstante, em contrapartida, seja discreto verificar, diligentemente , quem deva ser notificado ou cientificado para o processo, nos termos do que dispõem os §§ 3º e 4º do art. 216-A da Lei n. 6.015/1973.

975. A representação por advogado é uma exigência sempre de caráter especial, e é por isso que ela não poderia amparar-se na regra do art. 15 do Código de processo civil de 2015, em que se encontra uma preceituação geral: “Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”).

É que, no plano geral, esse dispositivo do art. 15 do Código de processo civil parece propício ao campo de todos os processos judiciais, a que prescreve aplicar-se a regulativa do mesmo Código, de modo supletivo e subsidiário, abrangendo, pois, o processo administrativo judicial. Bem por isto que, quanto aos supostos específicos, esse art. 15 não se estenderia ao processo extrajudicial, é que o art. 216-A da Lei 6.015 faz expressa referência a que o solicitante do processo extrajudicial de usucapião seja “representado por advogado”

Não porque, entretanto, deva afastar-se a incidência da regra do art. 15 do Código ao tema da representação do solicitante por advogado, caberia entender exigível exibisse ele instrumento de procura com firma reconhecida. É que, desde a vigência, entre nós, da Lei 8.952/1994 (de 13-12), dispensa-se o reconhecimento de firma na procuração geral para o foro (Cód.pr.civ. de 1973, art. 38; Cód. de 2015, art. 105), e não se vê motivo, ao menos por igualdade de razão (quando não a fortiori), para exigir esse reconhecimento quanto à esfera extrajudicial.

Se o requerimento inicial se apresentar sem o instrumento de procura é de todo plausível tal como resulta de uma compreensão tolerante do significado normativo da exceção contida na parte final do art. 104 do Código de 2015 (já era assim que se entendia ao tempo do Código de 1973). Lê-se nesse referido art. 104 do Código de 2015: “O advogado não será admitido a postular em juízo sem procuração, salvo para evitar preclusão, decadência ou prescrição, ou para praticar ato considerado urgente”.

976. Prevê o inciso I do art. 216-A da Lei 6.015/1973 que o requerimento para instaurar-se o processo extrajudicial de usucapião se instrua com “ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias (…)”.

A ata notarial é um dois documentos primários expedidos pelo tabelião de notas; o outro desses documentos é a escritura notarial. Trata-se, quanto à ata prevista nesse art. 216-A, de um documento especificamente protocolar −ou seja, constante protocolo notarial, que se define o conjunto ordenado de instrumentos autorizados pelo notário. A ata notarial, é certo, pode ser também não protocolar (p.ex., a ata de reconhecimento firma); aqui, todavia, cuida-se do documento autônomo expressivo da narrativa de um fato influente em uma relação ou situação jurídica. Por meio da ata põe-se o notário no plano de atuação de uma dimensão fática (Pedro Avila Alvarez), diversamente do que se passa com a escritura, em que o notário oficia no âmbito negocial.

Assim, a ata notarial à narrativa de fatos e circunstâncias, tal como os capte o notário pelos sentidos externos da visão e, quando o caso, também da audição, percepcionando ainda os mesmos fatos mediante os sentidos internos (a imaginação, a memória, o senso comum e, sobretudo, a cogitativa). Quando isto se admita de maneira expressa na legislação de regência, o notário pode narrar, além do que presencia e capte ele próprio, fatos que constem (o que é próprio da ata de notoriedade).

Ladeando a persistente controvérsia sobre a distinção entre, de um lado, a escritura autorizada pelo notário, e, de outro, a ata notarial, parece razoável a doutrina que demarca a escritura não pela prestação de consentimento dos outorgantes, mas, isto sim, por seu ser objeto matéria de contrato. Ilustrativas indicações podem recolher-se nas lições de Giménez-Arnau, quais as das as maritais e paternais, ou as das simples renúncias, que não engendram obrigações, rendendo ensejo à elaboração de atas notariais e não de escrituras, a despeito do fato de que nelas haja manifestações de vontade. Adotada essa distinção, se, pois, no instrumento notarial, não houver expressão de vontade criadora, modificadora ou extintiva de direitos, estar-se-á diante de uma ata notarial (Núñez Lagos).

Prosseguiremos.