(da série Registros sobre Registros, n. 280)
Des. Ricardo Dip
969. O conceito semântico de «usucapião» é remetido de comum à específica semântica jurídica. Moraes já assim procedera: usucapião é o “modo antigo −disse ele− de adquirir propriedade, pela posse pacífica durante certo tempo”; e é o que também assenta, por muitos, o contemporâneo Houaiss. Dessa maneira, o uso da palavra «usucapião», ainda em algum ambiente não jurídico, é o que provém da esfera do direito. O mais que se admite, e ainda assim de modo pouco frequente, é uma certa expansão da ideia do modo aquisitivo (usucapião, em sentido próprio) para a do objeto adquirido com esse modo (a coisa usucapta): ou seja, “esta é minha usucapião”, como quem, de maneira similar, diz de uma coisa que comprou: “esta é minha compra”. Parece aí estarmos no campo da metonímia.
Todavia, é preciso ressalvar que a correntia noção semântica −assim a de Moraes, que indica ser a usucapião um modo de adquirir propriedade− deve tomar-se como caráter do que por antonomásia é a usucapião, pelo bom motivo de que não é só a propriedade −ou seja, o domínio pleno de uma coisa− que pode ser adquirida pela usucapião, mas também podem ser adquiridos outros direitos reais de fruição, assim, p.ex., o uso, o usufruto, as servidões. Desta maneira, o conceito semântico de «usucapião», embora derivado de sua noção jurídica, padece de alguma redução de objeto, uma vez que não compreende a constituição dos direitos reais de gozo.
Em suma, mediante usucapião adquirem-se direitos sobre coisas em razão de seu uso contínuo e duradouro, com caráter de posse −dominii adeptio per continuationem possessionis (Ulpiano).
Assim, estritamente, a usucapião é uma causa geral de aquisição do domínio e dos direitos reais de fruição (ou gozo); trata-se de uma categoria autônoma, própria do segmento do direito das coisas, ainda que não se possa, sem mais, recusar a perspectiva com que antigos doutrinadores incluíam a usucapião entre as espécies de uma prescrição geral, que abrangia, ao lado da mesma usucapião (tida como prescrição positiva ou aquisitiva), a prescrição negativa (ou extintiva), a decadência (ou caducidade) e o não uso (cf., brevitatis causa, José de Oliveira Ascensão, Direitos reais, 1978, item 160).
Assinale-se que, ainda em nossos tempos, Benedito Silvério Ribeiro admite serem sinônimos os termos «prescrição aquisitiva» e «usucapião», ressalvando, embora, deva afastar-se a nota de que com isso se conjugue a extinção das ações (prescrição negativa ou liberatória -cf. o.c., item 66). É aquisição, não extinção; daí que falar em usucapio libertatis quanto a direitos preexistentes seja inútil (Oliveira Ascensão) e até impróprio (Carvalho Fernandes, Rui Pinto Duarte, Benedito Silvério Ribeiro).
Alberto Trabucchi observou, a propósito, que o discrimen entre, de um lado, a prescrição, e, de outro lado, a usucapião, está em que, presentes em ambas uma relevante inércia do titular de um direito, a usucapião assinala-se pelo aspecto do interesse que o usucapiente (ou prescribente) evidencia, ao largo do tempo, em ter a coisa como sua –“l’accento è posto sull’interesse che il soggetto per lungo tempo ha dimostrato di avere per la cosa” (Istituzioni di diritto civile, 1978, item181). E esta distinção tanto mais importa quando se considere que o direito de propriedade não se extingue pelo só fato da inércia do dono da coisa, mas, sim, pode perder-se pela posse continuada de terceiro; ou seja, a inércia do dono é pressuposto necessário do perdimento domínio, mas não é seu motivo suficiente, porque demanda o exercício possessório adverso por terceiro.
970. A usucapião é um dos modos constitutivos −ou aquisitivos− do domínio pleno e dos direitos reais de gozo, e esses modos submetem-se à regulação positiva estatal, como é próprio de toda a esfera da distinção de posses −distinctio possessionum−, como é da doutrina clássica. Neste sentido, ainda que se fundamente no direito natural a propriedade particular das coisas, isto não significa possa faltar alguma conclusão ou sobredeterminação racional (cf., a propósito, brevitatis studio, S.Tomás de Aquino, th., II-II, 66, 2, ad1), p.ex., a relativa às formas instrumentais (escritura pública) ou ao tempo das aquisições (assim, a duração das posses ad usucapionem).
Não é esta a ocasião propícia para examinar mais a fundo o caráter jurídico-natural da usucapião, sequer, indo ainda mais longe, às exigências éticas no campo geral da economia e, particularmente, na esfera do domínio, o que inclui os modos de sua constituição. De toda maneira, quando se tem aos olhos uma nouvelle question sociale (título de um livro de Pierre Rosanvallon, publicado em fins do século passado), empolgando a conveniência, quando não seja a necessidade, de reconsiderar na hora presente as bases antropológicas da economia (assim, Leonardo Polo, in Filosofía y economía, 2012), mormente porque, em tempos nos quais uma grande massa de bens naturais está destinada não ao pronto consumo, senão que a uma produção sucessiva de capitais, dirigidos por sua vez a produzir novos bens, é interessante recolher e apreciar estas meditações de Ricardo Crespo (Filosofía de la economía, 2012): “La economía nació y vivió muchos siglos como ciencia moral. Solo en el siglo XIX abandonó su carácter ético bajo el influjo de un marco epistemológico propio de las ciencias natrales, y de un agnosticismo acerca de los fines, propio de buena parte de la modernidad. El análisis de su objeto, una acción humana en la que se consideran medios y fines, comporta una doble racionalidad, técnica y práctica, y también una doble normatividad, técnica y ética. que no están desvinculadas. Por eso, la economía debe volver a ser ciencia ética, renunciando al axioma de neutralidad valorativa (…)” (p. 73).
Para nosso capítulo −o da usucapião− não se trata só de admitir que esse modo aquisitivo do domínio e de outros direitos reais seja uma sorte de direito das gentes −ius gentium−, no sentido de que deriva da lei natural por meio de conclusão não muito distante dos princípios daquela (derivatur a lege naturali per modum conclusionis quæ non est multum remota a principiis −S.th., I-II, 95, 4, ad1), senão que se deva considerar prudentemente tanto a razoabilidade dos prazos exigidos positivamente para que se satisfaça a usucapião, quanto as circunstâncias concretas para indicarem-se esses prazos, com que se explica sua variedade segundo as diferentes ordens positivas. Isto é matéria da prudência legislativa; mas, ao menos, fique afirmado o caráter jurídico-natural da usucapião como modo constitutivo da propriedade e dos direitos reais de gozo, ainda que sob a condição de sua disciplina complementar pelos ordenamentos positivos.
971. Entre várias divisões possíveis da usucapião, uma delas remete-se a seus objetos, móveis ou imóveis, a esta última, por evidente, estando remetida a previsão do item 28 do inciso I do art. 167 da vigente Lei brasileira de registros públicos.
Outra e muito relevante divisão é a que corresponde, de maneira eminente, ao tempo das possessões exigíveis para a usucapião, a que se acrescentam, entretanto, outros requisitos. Em nosso ordenamento jurídico atual, assim se classifica a usucapião, com sua correspondência a variável tempo de posse:
(i) usucapião extraordinária (com o tempo de 15 anos, que se reduz a dez, na hipótese de “o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo” −cf. do art. 1.238 do Cód.civ. de 2002);
(ii) ordinária (com o prazo de dez anos, reduzível a cinco, “se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico” −art. 1.242 do Cód.civ. de 2002);
(iii) especial urbana (art. 1.240 do Cód.civ. de 2002: prazo de cinco anos);
(iv) coletiva urbana (tempo de cinco anos: cf. art. 10 do Estatuto da Cidade, Lei 10.257, de 10-7-2001, com o texto da Lei 13.465/2017, art. 79);
(v) indígena (tempo de dez anos: art. 33 do Estatuto do Índio, Lei 6.001/1973, de 19-12);
(vi) para os que reputem ser hipótese de usucapião a assim designada “usucapião familiar” −que mais provável parece ser uma espécie de adjudicação compulsória−, o tempo de posse é o de dois anos (art. 1.240-A do Cód.civ. de 2002).