Registro de usucapião (primeira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 279)

                             Des. Ricardo Dip

                         968. O item 28 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, alista por suscetíveis de registro stricto sensu as “sentenças declaratórias de usucapião”. Melhor se teria dito fosse objeto desse registro a própria usucapião −como modo aquisitivo extratabular, abarcando, pois, o título complexo de sua consumação (tituli adquirendi que, por certo, não se confundem com os documentos ou títulos formais em que se veiculam e se apresentam perante o ofício imobiliário).

                     Vamos examinar nesta série “Registros sobre registros”, quanto a esse capítulo da usucapião, seguidamente, seu conceito nominal e real, sua divisão, sua natureza jurídica −enquanto modo aquisitivo (é dizer, se originário ou derivado)−, os processos judicial e extrajudicial com que pode reconhecer-se segundo as regulativas brasileiras de regência e, enfim, os títulos formais para que a usucapição aceda ao registro imobiliário.

                     Comecemos, pois, pela apreciação etimológica. Usucapio, usucapionis. Este substantivo da língua latina está na origem de nosso vernáculo «usucapião». Poderia ter-se a tentação de, pela terminação desta palavra no idioma português, conjecturar ser-lhe de proveniência próxima a declinação usucapionem, o que corresponderia a uma dada tendência de nossa língua portuguesa em recolher os vocábulos latinos pelo caso acusativo. Mas não se pode passar ao largo das lições sumariadas do autorizado João de Freitas Guimarães, que sustentou provir nosso vernáculo «usucapião» de virem juntos os ablativos usus e capione (Vocabulário etimológico do direito, 1991, p. 311-2).

                     O nome usucapio significa modo de adquirir pela posse ou pelo uso, mas há também o verbo usucapio (infinitivo usucapere), com o sentido de «tomar pelo uso», «adquirir por longo uso» (assim, Francisco Torrinha). O substantivo usucapio é palavra do gênero feminino em latim. Todavia, atenda-se a que o vocábulo usus é masculino, e, por sua vez, o termo latino capio −que boa parte de célebres latinistas refere ser um verbo (p.ex., Forcellini, Michiel de Vaan, Ernout-Meillet, Torrinha, Ernesto Faria)− vem indicado por alguns outros autorizados cultores da língua latina (assim, Santos Saraiva e Napoleão Mendes de Almeida) também na classe dos substantivos (capio, capionis: a própria ação de tomar posse), e aí com o gênero feminino. E por ser capio palavra feminina, nisto repousou a justificativa de Napoleão Mendes de Almeida para a adoção do gênero feminino também quanto à nossa palavra portuguesa «usucapião». Merece conferir-se o que disse, a propósito, esse autor, que foi dos maiores latinistas no Brasil:

         “Por não existir em nosso vocabulário o nome comum capião, distraíram-se nossos codificadores, incluindo Rui Barbosa, no atribuir ao composto o gênero. Se não existe em português, existe em latim a palavra capio, capionis, que significa «ação de tomar posse ou meter-se posse» e também «direito de propriedade adquirido por prescrição». Qual seu gênero em latim? Feminino.

            Feminino é em latim capio, feminino é em latim também o composto usucapio, termo jurídico usado por Cícero, por Tito Lívio, por Ulpiano, conforme nos assevera Saraiva. A aquisição, a tomada do bem real pela possessão prolongada é «a usucapião», feminino” (Dicionário de questões vernáculas, 1981, p. 325).

              Benedito Silvério Ribeiro, em seu célebre Tratado de usucapião (1992), historiou que “o projeto do Código civil [de 1916] trazia o feminino, o que foi mantido pela comissão revisora dos jurisconsultos. No entanto, o senador Rui Barbosa apresentou emenda, passando a palavra para o masculino (usocapião), restando convertida a modificação em lei” (vol. I, p. 165).

              E, com efeito, o Código civil brasileiro de 1916 usou a palavra «usucapião» com o gênero masculino: p.ex., “Adquire-se a propriedade imóvel: (…) III- pelo usucapião” (art. 530); “As causas que obstam, suspendem, ou interrompem a prescrição, também se aplicam ao usucapião (…) (art. 553); “A posse incontestada e contínua de uma servidão por dez ou quinze anos, nos termos do artigo 551, autoriza o possuidor a transcrevê-la em seu nome no registro de imóveis, servindo-lhe de título a sentença que julgar consumado o usucapião” (caput do art. 698). Muitos juristas trilharam o mesmo uso do vocábulo com o gênero masculino (Carvalho Santos, Serpa Lopes, Washington de Barros Monteiro, Jorge Americano, Caio Mário da Silva Pereira, Maria Helena Diniz, e o próprio Clóvis Beviláqua, autor embora o projeto de nosso Código de 1916, usou assim a palavra, nos livros de doutrina, com o gênero masculino, tal o observou Benedito Silvério Ribeiro).

              Outros juristas, entretanto, preferiram usar o vocábulo com o gênero feminino (assim, o Conselheiro Lafayette, Lacerda de Almeida, o Conselheiro Ribas, Carvalho de Mendonça, Lenine Nequete, Orlando Gomes, Pontes de Miranda −ainda aqui a recolha de nomes provém de Benedito Silvério Ribeiro; acrescentam-se, de minha parte, com símile escolha: José Carlos de Moraes Salles, Leonardo Brandelli e Henrique Ferraz Corrêa de Mello), e já a Lei 6.969/1981 (de 10-12), versando sobre a aquisição por usucapião especial, usou o termo no feminino (p.ex., em seu art. 2º “A usucapião especial, a que se refere esta Lei, abrange as terras particulares e as terras devolutas, em geral, sem prejuízo de outros direitos conferidos ao posseiro, pelo Estatuto da Terra ou pelas leis que dispõem sobre processo discriminatório de terras devolutas”.

             Também nosso Código civil de 2002 acolheu o vocábulo com esse gênero feminino: assim, intitulou “Da usucapião” as seções dos capítulos que, nesse Código, tratam da aquisição da propriedade, tanto imóvel, quanto móvel, e ainda pode ler-se em seu art. 1.244: “Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”, e no art. 1.379: “O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a usucapião”. Em nossa Lei de registros públicos, as várias aparições do vocábulo não se antecederam nem se sucederam de palavras que pudessem identificar-lhe o gênero.

              Os juristas portugueses parecem inclinar-se ao uso do vocábulo «usucapião» no feminino: p.ex., José de Oliveira Ascensão (Direitos reais, 1976, p. 336), Santos Justo (Direitos reais, 2007, p. 184), Rui Pinto Duarte (Curso de direitos reais, 2007, p. 198)