(da série Registros sobre Registros, n. 365)
Des. Ricardo Dip
1.121. Tratemos agora do registro «da constituição do direito de superfície de imóvel urbano», matéria prevista no item 39 do inciso I do art. 167 de nossa Lei 6.015, de 1973.
O direito de superfície, existente de antigo no direito pátrio, extinguira-se entre nós por força do art. 6º da Lei 1.237, de 24 de setembro de 1864 −que não incluiu a superfície entre os ônus reais−, e não se acolheu, tampouco, no Código civil de 1916 (cf. art. 674, que alista os direitos reais, entre eles não se contando o de superfície). Todavia, reintroduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro com o Estatuto da Cidade, a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, normativa que visou a regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição nacional. Previu-se, então, o direito real de superfície, na referida lei, entre os institutos jurídicos e políticos para sua efetivação (alínea l do inc. V do art. 4º), preceituando-se seu registro no ofício imobiliário competente, como se lê em seu art. 21: «O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis» (cf. também o art. 56, que exatamente incluiu o item 39 no inc. I do art. 167 da Lei 6.015).
A mesma Lei 10.257 exprimiu a possibilidade da dissociação entre, de um lado, a titularidade jurídica do solo, e, de outro lado, a titularidade das construções ou das plantações nele acedidas: «O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística» (§ 1º do art. 21).
Previu a lei que o direito de superfície pode ser oneroso ou gratuito (§ 2º do art. 21), admitindo-se sua transferência inter vivos (§ 4º do art. 21) ou mortis causa (§ 5º do mesmo art. 21), instituindo direito de preferência em favor do titular do direito de superfície no caso de alienação do solo, e símile direito em benefício do titular do domínio do solo em caso de alienação da superfície (art. 22).
Disciplinando a extinção do direito de superfície, a Lei 10.257, indicou o averbamento dessa extinção no registro de imóveis (§ 2º do art. 24, acrescentando-se, tal o dispõe seu art. 57, o item 20 no inc. II do art. 167 da Lei 6.015).
1.122. O Código civil brasileiro de 2002 versou também sobre o direito de superfície, alistando-o entre os direitos reais (inc. II do art. 1.225), prevendo em seu art. 1.369: «O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis».
Afastando, salva exceção, que o direito de superfície autorize obra no subsolo (par. único do art. 1.369), reafirmou o Código a possibilidade de esse direito de superfície ser oneroso ou gratuito, admitindo, quanto ao primeiro modo, a possibilidade de parcelamento do preço (art. 1.370). Reiteraram-se a suscetibilidade de o direito de superfície transferir-se a terceiro (art. 1.371) e a preferência tanto do titular do domínio do terreno, quanto do titular da superfície (art. 1.373)
Caberia indagar, neste passo, se o advento do Código civil revogou, no todo ou em parte, o constante da Lei 10.257 acerca do direito de superfície, ou se, ao invés, há um regime complementar dos dois diplomas normativos. A lição de Luciano de Camargo Penteado é pela convivência das duas normativas: «A coexistência de dois tipos de direito de direito de superfície, um regulado pelo ECid e outro pelo CC, entretanto, não implica revogação de nenhum deles, nem tampouco derrogação. As duas modalidades de direito real convivem, uma especial, outra geral, de direito comum, recebendo influências recíprocas das leis instituidoras (…)» (Direito das coisas, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, p. 404-405; assim, também pensa Arnaldo Rizzardo, Direito das coisas, ed. Gen-Forense, 8.ed., Rio de Janeiro, 2016, p. 880); contra: Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro, ed. Saraiva, 10.ed., 2015, vol. 5, p. 45-451).
A questão é controversa e, ressalte-se, tem seus problemas projetados para o registro imobiliário. Sem embargo da emérita autoridade de Carlos Roberto Gonçalves, parece ter boas razões a tese que afirma a complementaridade dos regimes da Lei 10.257 e do Código civil acerca do direito de superfície. Nesse mesmo sentido, inclinou-se a I Jornada de Direito Civil do Conselho Federal da Justiça, tal se lê em seu enunciado 93: «As normas previstas no Código Civil sobre direito de superfície não revogam as relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) por ser instrumento de política do desenvolvimento urbano».
Com efeito, há distinções na disciplina ditada com a Lei 10.257 e na assinada no Código civil. Para logo, o direito de superfície da Lei 10.257 diz respeito a imóvel urbano, e o previsto no Código civil estende-se ao solo rural. Além disso, conforme o Código, o direito de superfície terá sempre tempo determinado (art. 1.369), ao passo em que o art. 21 prevê que esse direito se constitua «por tempo determinado ou indeterminado». Pelo Código, o direito de superfície não abrange, ressalvada disposição em contrário, o direito de o superficiário utilizar o subsolo (par. único do art. 1.369), o que não veda o Estatuto da Cidade.
Assim, tanto se apresente ao registro de imóveis título idôneo a constituir direito de superfície −relativo sempre a solo urbano−, parece não deva exigir-se indicação de tempo determinado para o exercício desse direito.
1.123. Que se entende com a clássica noção jurídica de superficies?
Substantivo latino de quinta declinação (superficies, superficiei), a ideia comum de superficies correspondia às acepções de «face superior», «parte exterior», «o que está sobre o dolo», «edifício», «construção» (veja-se Torrinha).
Não discrepava o sentido clássico jurídico: superficies é, entre os romanos, o edificado, o plantado e o de qualquer modo unido inseparavelmente ao solo (cf. Álvaro D'Ors, Derecho privado romano, Eunsa, 9.ed., Pamplona, 1997, § 134, p. 185). Importa distinguir-lhe do do solum (terreno, solo), e fez-se comum a expressão superficies solo cedit −a superfície é acessório do solo; ou seja, acede ao imóvel o que nele se planta (plantatio) ou se constrói (ædificatio −veja-se D'Ors, § 167), porque acessorium solo cedit (o acessório cede ao solo), ou, no Digesto, com Ulpiano: «Superficies ad dominum soli pertinet» (o plantado ou edificado pertence ao dono); ainda: cuius est soli, eius est usque ad cœlum et usque ad inferos (ao dono do solo pertence o que está acima dele até o céu e, debaixo, até o inferno). Ou seja, sempre se assegurava a unidade jurídica do solo e das coisas nele implantadas (cf., a propósito, José de Oliveira Ascensão, Direitos reais, Lisboa, 1978, p. 505).
Pois é exatamente o juízo superficies solo cedit o que se excepciona, é essa referida unidade jurídica que se põe em xeque com o direito de superfície, porque, mediante a autonomização jurídica da superfície, dissociam-se o solo e as construções ou plantações nele existentes (é dizer, acedidas, implantadas), em uma dissociação que permite distinguir, ao lado, do domínio do solo (ou fundo), a titularidade de um direito real de coisa própria incorporada (implante) sobre coisa alheia.
Prosseguiremos.