(da série Registros sobre Registros, n. 364)
Des. Ricardo Dip
1.118. Prevê-se no item 37 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, que caiba o registro em sentido estrito «dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia».
A atração desses títulos para o registro de imóveis corresponde, de algum modo, ao atendimento do que se lê no § 1º do art. 138 da Constituição brasileira de 1988: «Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural».
Essa norma constitucional foi objeto de regulamentação com a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001 −Estatuto da cidade, que, entre os institutos jurídicos e políticos criados, incluiu a concessão de uso especial para fins de moradia (alínea h do inc. V do art. 4º), prevendo, em seu art. 56, a inclusão, na lista de títulos registráveis stricto sensu no ofício imobiliário, o item 37 com esta redação: «dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia, independente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação».
Posteriormente, a Medida provisória 2.220, de 4 de setembro de 2001, excluindo a parte final do texto anterior −«independente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação»−, deu uma nova redação ao referido item 37, que é a ainda vigente.
1.119. Embora o Estatuto da cidade (Lei 10.257) previsse −como ficou dito− a concessão do direito especial para fins de moradia, o fato é que se vetaram os dispositivos legais que lhe correspondiam (arts. 15 a 20), sobrevindo a Medida provisória 2.220, em que se encontram previsões de particular interesse para o âmbito do registro de imóveis, assim as que se leem em seus arts. 6º, 7º e 8º.
O art. 6º da Medida provisória 2.220 prevê dúplice possibilidade de instrumentos para que se institua a concessão do direito especial para fins de moradia: um título de origem administrativa ou um título judicial. Veja-se o que diz o caput desse mencionado art. 6º: «O título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante o órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial». Numa ou noutra das hipóteses, o título deve ser levado a registro no ofício imobiliário, de acordo com o que dispõe o § 4º do aludido art. 6º da Medida provisória 2.220: «O título conferido por via administrativa ou por sentença judicial servirá para efeito de registro no cartório de registro de imóveis». (Abra-se aqui um parêntese para indicar-se uma questão de todo controversa: pode o registrador aferir a competência do agente administrativo que expeça o termo da concessão? Parece que sim, tanto quanto pode verificar a competência judicial correspondente, sempre que se trate de ser ela absoluta).
O art. 7º da mencionada Medida provisória assenta permitir-se a transferência inter vivos ou mortis causa do direito de concessão de uso especial para fins de moradia.
E o art. 8º versa as hipóteses de extinção desse direito, quais (i) a de «o concessionário dar ao imóvel destinação diversa da moradia para si ou para sua família», e (ii) a de «o concessionário adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural». Em uma e outra dessas hipóteses caberá a averbação no ofício imobiliário, bastante a «declaração do Poder Público concedente» (par. único).
Adiante, a Lei 11.481, de 31 de maio de 2007, acrescentou o direito de uso especial para fins de moradia na lista dos direitos reais constante do Código civil brasileiro (inc. XI do art. 1.225), dispondo ainda sua suscetibilidade ao gravame da hipoteca (inc. VIII do art. 1.473).
1.120. Eminente estudo da matéria foi o que elaborou Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em capítulo da obra coletiva Estatuto da cidade (Comentários à lei federal 10.257/2001), obra essa coordenada por Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz (ed. Sbdp -Sociedade Brasileira de Direito Público e Malheiros, São Paulo, 2010, p. 150 et sqq.; a primeira edição é do ano de 2002).
Nesse seu estudo, a muito autorizada professora da Universidade de São Paulo observou, de início, que a concessão de uso especial para fins de moradia é uma das espécies «de outorga de uso privativo de bem público ao particular». A concessão, disse a autora, é, de comum, um contrato administrativo, por meio do qual se «faculta ao particular a utilização privativa de bem público, para que a exerça conforme a sua destinação».
O caso da concessão de uso especial para fins de moradia, no entanto, assim prosseguiu a Professora Zanella Di Pietro, apresenta a peculiaridade de a legislação que lhe corresponde não fazer referência a contrato. O instituto, continua a autora, «foi tratado como ato unilateral»,
• gratuito (§ 1º do art. 1º da Medida provisória);
• de simples uso −e não de exploração (porque sua finalidade é a de moradia, sob pena de extinguir-se a concessão −cf. art. 8º da mencionada Medida provisória 2.220);
• a concessão é perpétua (porque «o direito subsiste enquanto o concessionário respeitar a utilização para fins de moradia e não adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural»);
• de utilidade privada (ou seja, no interesse do concessionário e de sua família);
• obrigatória, «porque o Poder Público não pode indeferir a concessão se o particular preencher os requisitos dos arts. 1º e 2º (da Medida provisória 2.220)»;
• autônoma, por não se vincular a nenhuma outra modalidade de concessão.
Até aqui um breve resumo do valioso estudo de Maria Sylvia Zanella Di Pietro.
No aspecto mais diretamente ligado ao direito registral, importa salientar que os títulos correspondentes à concessão de uso especial para fins de moradia, não são apenas públicos −quais os de seu registro stricto sensu (termos administrativos e sentenças judiciais) e os do averbamento extintivo da concessão. É que, podendo a concessão transferir-se por ato entre vivos ou causa mortis, atrairá, nessas hipóteses, a possibilidade dos títulos notarial (de transferência inter vivos e de inventário) e até mesmo de origem particular (se o valor do imóvel não ultrapassar o teto previsto no art. 108 do Código civil: «Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País»).
Não competindo ao registrador, em sua tarefa de qualificação, verificar se o concessionário preenche as condições de posse e de destinação do bem indicadas no § 1º do art. 138 da Constituição nacional, já, de maneira diversa, é bastante provável (embora não imune de controvérsia) que lhe caiba o controle do requisito de o imóvel objeto superar os 250m2 de área.
Restaria uma discussão: pode (ou deve) o registrador aferir se o concessionário é proprietário de outro imóvel urbano ou rural? A questão é bastante problemática: que não esteja o registrador obrigado a sindicar, concede-se. Mas se houver no próprio cartório a indicação desse domínio… parece que a matéria toma outro rumo, e o registrador, conhecendo, propter officium, esse fato, haja de apontá-lo para qualificar negativamente o pleito de registro.