Sobre a anticrese (concluditur)

(da série Registros sobre registros n. 227)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

885. Para encerrar este capítulo acerca do registro da anticrese, tratemos concisamente de apenas mais dois pontos: o primeiro deles, sobre o entendimento de Affonso Fraga acerca desse registro; o segundo quanto ao averbamento da extinção de anticrese no ofício imobiliário.

 

Historiando que a transcrição do contrato anticrético se instituiu, entre nós, com a Lei 1.237, de 24 de setembro de 1864 –lei essa que foi regulamentada com o Decreto 169-A/1890 (de 19-1)–, Affonso Fraga observou que essa transcrição “era requerida unicamente como condição para eficácia do ato jurídico contra terceiros, pois, em relação às partes contratantes, reputava-se o ato perfeito e acabado pelo preenchimento das solenidades legais, fosse ou não transcrito” (Direitos reaes de garantia, item 175).

 

Não é implausível considerar que essa doutrina não esteja a afirmar a incidência aí do solo consensu, vale dizer, de que bastaria o consentimento das partes contratantes para o aperfeiçoamento do pacto anticrético, quando se considere que a tradição –ou seja, a entrega do imóvel ao credor– integra a realidade da anticrese. Por mais que a referida Lei 1.237 se haja limitado a arrolar a anticrese entre os ônus reais, sem devotar-lhe preceito algum sobre a disciplina de sua existência –e silêncio similar manteve o Decreto 169-A–, o fato é que o empossamento do imóvel pelo credor constitui parte essencial do instituto anticrético. Se assim é, avista-se que o sistema da Lei 1.237 se apoiaria na tradição real do prédio, e não apenas no solo consensu. Indício de que esse era o entendimento de Fraga está em que o autor realçou o papel da investidura possessória, até mesmo depois da vigência do Código civil brasileiro de 1916, para o exercício do direito de retenção do imóvel pelo credor, “apesar da falta da transcrição”. Reitere-se aqui a lição –atrás enunciada: “A convenção por si só (nuda) não basta para transferir o direito anticrético ao credor; é mister a tradição do imóvel sobre o qual ela se constituir” (Conselheiro Lafayette).

 

Com esse Código de 1916, diz Affonso Fraga, abraçou-se o sistema germânico, “que se não compraz unicamente com a publicidade, como elemento suficiente para dar aos terceiros as garantias de uma boa legislação, mas como condição para dar nascimento ao próprio direito” (ibidem; o itálico não é do original). Embora o autor fale em condição, talvez melhor seja estimar que aí se trate de uma causa da anticrese, mais exatamente sua causa formal. É que a anticrese, com a disciplina do Código de 1916, estava submetida à norma de seu art. 676: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos só se adquirem depois da transcrição ou da inscrição, no registro de imóveis, dos referidos títulos (arts. 530, n I, e 856), salvo os casos expressos neste Código”. Dessa maneira, a transcrição (agora: o registro) é a forma que determina a matéria da anticrese, é a causa que atualiza a potência do título contratual e do apossamento do imóvel. O registrador, enfim, está para a inscrição da anticrese, quanto um escultor para a feitura de uma estátua; a forma dessa estátua (p.ex., a figura do Padre Pio) está para o mármore de que se faça, tanto quanto o registro está para o contrato de anticrese; seu registro não é condição, é causa, causa formal da anticrese.

 

886. Acenando ao que dispunha o art. 214 do Decreto brasileiro 270/1890 (de 2-5) –“Feita a inscrição, se contiver quaisquer nulidades, o oficial não pode repará-las, e os terceiros adquirem o direito de invocá-las a seu favor”–, Dídimo da Veiga havia ensinado que “assim como a inscrição só produz efeito quoad tertios como veículo de publicidade, assim a rescisão da mesma pelo cancelamento só produz efeito em relação aos terceiros e nenhum em referência às partes contratantes” (Direito hypothecario, item 255).

 

Ainda que essa lição fosse acomodada a nosso direito anterior ao Código civil de 1916, ela antecipa o que, adiante, veio a estabelecer-se com o disposto no caput do art. 293 do Decreto brasileiro 4.857/1939 (de 9-11) –“O registro, enquanto não for cancelado, produzirá todos os seus efeitos legais, ainda que por outra maneira se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”–, norma reiterada e texto quase à letra repetido pelo art. 252 da Lei 6.015, de 1973:   “O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”.

 

Affonso Fraga indicara a propósito: “Esses efeitos [refere-se, em capítulo relativo à anticrese aos da transcrição ou inscrição dos títulos constitutivos ou de transferência dos reais em geral] perduram com pleno vigor, posto o contrato anticrético se ache extinto, enquanto a transcrição não for devidamente cancelada, mediante certidão escrita pelo oficial do registro na coluna das averbações do livro respectivo” (o.c., item 177; assinale-se que esse texto comporta moldar-se à nova disciplina registrária, pois o autor escrevia isto no início da década de 30 do século passado, antes, portanto, de nosso Regulamento registral de 1939; mas, substancialmente, a lição é ainda correta).

 

Nada obstante a perseverança da correção desse entendimento de Affonso Fraga, duas situações devem ser, no entanto, consideradas de modo pontual: a da caducidade da anticrese e a da aquisição do imóvel pelo credor anticrético (hipótese a que se assemelha a da desapropriação).

 

Já nosso Código civil de 1916 previa, em seu art. 760 (aqui com a redação que lhe deu o art. 1º da Lei 2.437, de 7-3-1955): “O credor anticrético tem direito a reter em seu poder a coisa, enquanto a dívida não for paga. Extingue-se, porém, esse direito decorridos quinze anos do dia da transcrição”. Reiterou-se esse preceito, in substantia, no Código civil de 2002: “O credor anticrético tem direito a reter em seu poder o bem, enquanto a dívida não for paga; extingue-se esse direito decorridos quinze anos da data de sua constituição” (art. 1.423).

 

Sustenta Francisco Eduardo Loureiro que essa norma do art. 1.423 de nosso vigente Código civil não é de natureza prescricional, porquanto “inexiste previsão de violação de direito e, portanto, de pretensão”. Daí, prossegue o autor, que se trate aí de um prazo contínuo de 15 anos, “cujo decurso provoca automático cancelamento do direito real…” (Código civil comentado, coord. Cezar Peluso, comentário ao art. 1.423). Em palavras de Clóvis Beviláqua, ao tempo do Código de 1916, a lei estabeleceu para a anticrese “uma duração que não poderá exceder de trinta anos [esse prazo era o original do Código, antes da Lei 2.437, de 1955, que o reduziu, como visto, a 15 anos]”.

 

Dessa maneira, a extinção do direito real de anticrese opera, ex vi legis, ao cabo de 15 anos desde o registro de sua constituição, e a averbamento de sua extinção –vale dizer, a averbação de seu encerramento– tem caráter de mera notícia, não se aplicando a regra do art. 252 da Lei 6.015. Aqui, de modo similar ao que ocorre com a perempção da hipoteca, dá-se, ipso facto temporis, a caducidade da anticrese, e o averbamento dessa extinção pode realizar-se ex officio.

 

Da mesma sorte, a aquisição, pelo credor anticrético, do imóvel sobre o qual recaia a garantia, implica automática extinção da anticrese. Mas, nesse caso, o registro mesmo da aquisição importa num (mal designado) cancelamento indireto da inscrição da anticrese; melhor seria falar em encerramento indireto ou implícito, para destacar o que Afrânio de Carvalho observou ser a face negativa de uma aquisição.

 

No mesmo sentido, em hipótese de desapropriação do imóvel sobre o qual incida a anticrese, o registro predial da expropriação implica semelhante encerramento implícito da inscrição da anticrese.