Sobre a anticrese (sequitur)

(da série Registros sobre registros n. 226)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

882. Os títulos institutivos da anticrese são o contrato e a disposição de última vontade, aos quais deve ainda acrescentar-se o título judicial, constituindo-se a garantia mediante a inscrição dos títulos no registro público –que há de ser o imobiliário: “O acordo não tem eficácia erga omnes se não foi inscrito no registo de imóveis. A transcrição no registro de títulos e documentos não lha daria” (Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, § 2.622, 3, c)

 

Tratando-se de contrato, há exigência de sua forma pública tanto que seu valor exceda o teto previsto no art. 108 do Código civil brasileiro de 2002. Era já lição, entre outros, de Affonso Fraga, Clóvis Beviláqua e Carvalho Santos, ao tempo do Código civil anterior, a de que o contrato de anticrese exigisse instrumento público, não com mero caráter ad probationem, mas ad solemnitatem (Fraga), ressalvada a hipótese de valor inferior ao limite indicado no inciso II do art. 134 desse Código de 1916. Cabe, entretanto, observar, ainda que à conta de referência (e há de considerá-la, entre nós, apenas acadêmica), a circunstância de que, em rigor, não recaindo a anticrese, diretamente, sobre um imóvel, senão que sobre seus frutos, tanto que o imóvel, empossado pelo credor anticrético, permanece no domínio do devedor, seria teoricamente disputável a exigência de escritura pública para a instituição da garantia; lê-se em Fraga (item 135 dos Direitos reais de garantia): “A anticrese, tendo por objeto imediato os frutos e não a coisa que os produz…” (cf. também item 144). Carvalho Santos também deixou dito que a anticrese não onera o imóvel (Código civil brasileiro interpretado, art. 805, n. 5). Diversamente, contudo, disposição expressa de nosso Código civil –a do inciso IV de seu art. 1.424– escora a orientação doutrinária de que a anticrese recaia sobre imóvel; com efeito, prevê essa norma que o contrato de anticrese indique “o bem dado em garantia com as suas especificações”, ou seja, o imóvel, determinado e especializado.

 

Quanto à possibilidade de instituir-se a anticrese mediante disposição de última vontade (negócio jurídico unilateral) e por meio de decisão judicial, era já doutrina de Pontes de Miranda (§§ 2.622, 2 e 2.624), que, quanto à última, sustentou poder o juiz “constituir anticrese nos mesmos casos em que pode constituir hipoteca ou usufruto”. Prosseguiu o autor, dizendo que a anticrese judicial é cabível “quando essa for melhor solução, in casu, do que a hipoteca judicial”. Essa anticrese judiciária veicula-se por carta de sentença ou mandado.

 

883. O título anticrético deve satisfazer alguns supostos e requisitos legais expressos.

 

Para logo, já o deixamos antes referido, somente pode instituir anticrese quem tenha poder de disposição sobre o bem objeto da garantia (art. 1.420 do Código civil brasileiro). Isso, todavia, não impede retroaja a aquisição desse poder dispositivo para dar eficácia a contrato ou a negócio jurídico unilateral cuja formação tenha antecedido essa aquisição: “A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono” (§ 1º do art. 1.420; vale dizer, que o título não é nulo, nem anulável, mas somente ineficaz). Observe-se ainda que têm símile poder de disposição e, pois, podem instituir anticrese o (i) enfiteuta  e o (ii) usufrutário do imóvel, limitada a garantia ao tempo da duração do domínio útil correspondente, o (iii) fiduciário –quanto ao bem objeto do fideicomisso, enquanto dure a propriedade fiduciária–, e (iv) o próprio credor anticrético (vidē Pontes de Miranda, § 2.621). Acrescente-se que, estando a coisa anticrética em comunidade de domínio, só pode ser dada em garantia real, quanto à sua totalidade, mediante o consentimento de todos os comproprietários, sem que se impeça, todavia, possa cada um deles, individualmente, “dar em garantia real a parte que tiver” (§ 2º do art. 1.420 do Código civil brasileiro).

 

No plano objetivo, a anticrese deve incidir, ainda que de modo indireto (é dizer, repercutindo dos frutos do imóvel, que, estes, sim, são o objeto direto da garantia), sobre bens imóveis disponíveis: “…só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca” (parte final do art. 1.420 do Código civil). Decaindo de relevo a disputa apenas teórica relativa ao discrimen entre a anticrese e o penhor –porque, entre nós e com amparo na lei de regência, a doutrina prevalecente entende que a primeira tem sempre por objeto um imóvel (já assim antes mesmo do Código atual, lendo-se em Carvalho Santos: “A anticrese não se pode confundir com o penhor, principalmente porque tem por objeto um imóvel, enquanto o objeto do penhor deve ser uma coisa móvel”)–, merece aqui salientar-se a distinção referente à hipoteca; ao passo em que, na anticrese, o credor empossa-se do imóvel alheio e tem dele o direito de perceber frutos, já na hipoteca inexiste o deslocamento possessório, nem há direito de percepção dos frutos pelo credor hipotecário; calha, ainda, que, ao revés do que ocorre com o credor anticrético (art. 1.423 do Código civil brasileiro), o hipotecário não tem direito de retenção do prédio (pelo bom e bastante motivo de que dele não tem possessão à conta da hipoteca).

 

Tem-se no art. 1.424 de nosso Código civil um rol de requisitos para a eficácia do contrato anticrético, do qual devem constar (i) o valor do crédito, sua estimação, ou valor máximo –elemento característico, para o direito registral, da especialização do fato inscritível; (ii) o prazo pactuado para o pagamento desse crédito; (iii) a taxa dos juros, sem perder de vista, entretanto, que um acordo sobre os juros é facultativo; (iv) a individualização e as especificações do imóvel que se tem por objeto da garantia (isso responde à exigência de especialidade imobiliária objetiva): “Os imóveis devem ser (…) certos e determinados, sendo nula anticrese feita sem indicar que imóveis ficarão onerados, como garantia” (Carvalho Santos).

 

884. Essencial à anticrese é a posse do imóvel objeto pelo credor: nosso Código civil, no caput do art. 1.506, reiterando o que já se previa no art. 805 do Código de 1916, expressa a ideia de entrega do prédio ao credor anticrético: “Pode o devedor ou outrem por ele, com a entrega do imóvel ao credor, ceder-lhe o direito de perceber, em compensação da dívida, os frutos e rendimentos” (a ênfase gráfica não é do original). Embora aí se trate da investidura possessória do credor da anticrese, não se impõe seja o empossamento direto: “A posse que o constituinte da anticrese há de transferir –disse Pontes de Miranda– não é sempre a posse imediata. O bem imóvel pode achar-se, por exemplo, alugado. A transmissão da posse mediata também é entrega do bem imóvel” (§ 2.622, 3). Daí a observação do autor: “Qualquer tradição basta (simples, brevi manu, longa manu), inclusive o constituto possessório…”, mas, de toda a sorte, “a anticrese exige (…), para sua validade –é lição de Carvalho Santos–, a tradição do imóvel…”. Ainda mais que não se trata só do tema de sua validade, senão que de sua existência: a tradição do prédio é “condição essencial à constituição da anticrese” (isso o disse o mesmo Carvalho Santos), e, no mesmo sentido, Affonso Fraga (item 146).

 

Dessa maneira, o que não se permite, pois, é afastar o direito ao apossamento, com o que, em vez da anticrese, haveria em rigor ou uma dação dos frutos em pagamento ou uma hipoteca. Com efeito, se o devedor retiver a posse direta do imóvel para, recolhendo-lhe os frutos, entregá-los ao credor anticrético, está caracterizada a datio in solutum; se, em vez disso, o devedor conservar a posse, sem ajuste de entrega dos frutos, o que se configura é uma hipoteca.

 

Assim, sendo o primeiro atributo do credor anticrético o de fruir do imóvel objeto e perceber-lhe os frutos, nada impede que o empossamento correspondente seja mediato, o que a previsão do § 2º do art. 1.507 do Código civil de 2002 só faz confirmar, ao admitir que possa o credor dar o imóvel em locação, com que se extrai possa substituir-se na posição do proprietário-locador.