Sobre a enfiteuse (concluditur)

(da série Registros sobre registros n. 224)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

876. Para encerrar o tema da enfiteuse, tratemos de alguns poucos tópicos –especialmente relevantes para o campo do registro imobiliário–, reiterando que a normativa do Código civil brasileiro de 1916 continua a aplicar-se entre nós, mercê do que dispõe o art. 2.038 do Código civil de 2002.

 

Por primeiro, tenha-se em conta que o senhorio direto (i.e., o titular dominial) tem o direito de consolidar o domínio útil: (i) exercitando seu direito de preferência (arts. 683,  685 e 689 do Código civil de 1916) –direito de preferência que, em contrapartida, também se atribui ao foreiro (art. 684); (ii) em razão de abandono do imóvel pelo enfiteuta ou ainda de sua renúncia (art. 687); (iii) na hipótese de deteriorar-se naturalmente o prédio, “quando chegue a não valer o capital correspondente ao foro e mais um quinto deste” (inc. I do art. 692); (iv) havendo caducidade da enfiteuse (ou seja, quando se dê o falecimento do enfiteuta, sem deixar herdeiros -inc. III do art. 692);  (v) se houver comisso (inc. II do art. 692).

 

Cuidemos um tanto mais da situação do comisso. Próprio do contrato enfitêutico é o direito de o senhorio direto receber pensão (foro, cânon), “anual, certo e invariável” (cf. art. 678 do Código civil de 1916), e a falta de pagamento dessa pensão “por três anos consecutivos” (segundo a norma do inc. II do art. 692 do Código de 1916) faz com que o foreiro incorra em comisso. Trata-se, pois, com o comisso, de uma penalidade correspondente à extinção do aforamento: “Se o foreiro deixa de pagar a pensão por três anos consecutivos. cai em comisso –diz Clóvis Beviláqua–, isto é, perde o seu domínio útil, por decreto judicial provocado pelo senhorio em ação competente” (mas não se exclua a possibilidade de convenção das partes, assim o indicou Serpa Lopes). Esse prazo trienal, quanto às enfiteuses ditas seculares, já se apontava nas Ordenações filipinas, que prescrevia, entretanto, menor prazo, o de dois anos, para o comisso nos aforamentos eclesiásticos. O prazo do Código, observe-se, deve considerar-se supletivo da vontade dos contratantes –até em prestígio da possibilidade de o comisso relevar-se pelo senhorio direto; nada impedia, também, que leis extravagantes do Código estabelecessem diverso tempo para a caracterização da incorrência em comisso. Por fim, não custa dizer que, embora, com a vigência do Código de 1916, a configuração da pena de comisso se ajuste restritivamente à hipótese de não pagamento do foro por três anos consecutivos (inc. II do art. 692), lia-se, na doutrina de Lafayette, anterior ao Código, que o comisso também poderia caracterizar-se quando o foreiro desse causa, dolosa ou culposamente, a uma grave deterioração do prédio aforado, e ainda quando alienasse a enfiteuse sem que da alienação desse prévia notícia ao senhorio direto.

 

A consolidação dominial deve ser objeto de averbação no registro imobiliário, porque diz respeito à extinção do direito do enfiteuta (item 2 do inc. II do art. 167 da Lei 6.015, de 31-12-1973).

 

877. Consideremos agora o tema do direito de resgate, objeto do art. 693 do Código civil de 1916: “Todos os aforamentos, inclusive os constituídos anteriormente a este Código, salvo acordo entre as partes, são resgatáveis dez anos depois de constituídos, mediante pagamento de um laudêmio, que será de dois e meio por cento sobre o valor atual da propriedade plena, e de dez pensões anuais pelo foreiro, que não poderá no seu contrato renunciar ao direito de resgate, nem contrariar as disposições imperativas deste capítulo”.

 

Esse dispositivo tem a redação que lhe deu a Lei 5.827/1972 (de 23-11), e alterou o que havia previsto a Lei 2.437/1955 (de 7-3), que, por sua vez, já modificara o texto original do art. 693 do Código civil anterior. Previa-se na origem o decurso do prazo de 30 anos e o pagamento de 20 pensões anuais para que o foreiro exercitasse o direito de resgate; com a Lei de 1955, reduziu-se o tempo para 20 anos da constituição do aforamento, mantendo-se, entretanto, a condição de pagamento do equivalente a 20 foros. Com a mais nova redação do art. 693, advinda da Lei 5.827, o prazo diminuiu –assinando-se em dez anos–, modificando-se, também, o quantum a pagar-se pelo enfiteuta para viabilizar o resgate, exigindo-se, a título de laudêmio, o pagamento do correspondente a dois e meio por cento do valor coevo da propriedade plena, além de quantia equivalente a dez pensões anuais.

 

O direito ao resgate –que, assim o diz Arnaldo Rizzardo, a doutrina considera qual uma “desapropriação do domínio direto em favor do enfiteuta” (Direito das coisas, item 27.5)– traduz uma constante no desdobramento do domínio, qual seja, a vocação centrípeta que prevalece diante do caráter transitório da manifestação da elasticidade dominial. Trata-se, pois, com o resgate, de um mecanismo legal de consolidação, em benefício do enfiteuta, da propriedade plena e livre do imóvel aforado (é ainda o que se lê na obra de Arnaldo Rizzardo). Salvo o caso de ajuste entre as partes, o resgate exercita-se por via judicial (cf. Código brasileiro de processo civil, art. 549; anteriormente, no Código processual de 1973, art. 900).

 

Interessa aqui discutir sobre o modo de inscrição do resgate do aforamento. Já se viu que o resgate é tido, por alguma similaridade, como se fora expropriação. Já Pacifici Manzoni o referira, tal o menciona Serpa Lopes, que alista outros doutrinadores italianos (De Pirro, Ruggero, Pietro Germani), para, contrapondo-se ao entendimento de Coviello, concluir desta maneira: “Ato unilateral ou bilateral, compra e venda ou desapropriação, o que há de persistente e claro é tratar-se de um direito que produz, incontestavelmente, a  transferência do domínio direto para o enfiteuta (…)” (Tratado dos registos públicos, item 504). Daí o consequente inferido pelo mesmo Serpa Lopes: “Partindo, por conseguinte, do ponto de vista dos efeitos do direito de resgate, produzindo ele uma transferência de domínio, é irrecusável, dentro do nosso sistema, tratar-se de um ato suscetível de transcrição” (ibidem). Equivale a dizer, ante a Lei brasileira 6.015, que se trataria, pois, na lição de Serpa Lopes, de um ato suscetível de registro stricto sensu (cf. itens 29 e 34 do inc. I do art. 167).

 

Diversamente, contudo, Afrânio de Carvalho entendeu que, tanto quanto o comisso, também o resgate deverá averbar-se na matrícula do imóvel aforado (Registro de imóveis. 2.ed., 1977, p. 98).

 

Embora pareça mais persuasória a orientação adotada por Serpa Lopes, o fato que é a normativa brasileira prevê, em relação aos bens da União federal sob o regime enfitêutico seja o resgate averbado (Decreto-lei 9.760, de 5-9-1946, art.   124: “Efetuado o resgate, o órgão local do S.P.U. [Secretaria do Patrimônio da União] expedirá certificado de remissão, para averbação no Registro de Imóveis”). Assim, é de admitir que haja algum motivo –normativo que o seja– para emprestar equivalente razão relativamente à hipótese do resgate regido pelo Código civil, uniformizando-se a técnica, ainda que, reitere-se, a melhor solução doutrinária aparente ser aquela perfilhada por Serpa Lopes.

 

Frequentes, de resto, são os lapsos de escolha das espécies de inscrição –é dizer, registro em sentido estrito ou averbação– no âmbito do processo legístico, e pode até mesmo dizer-se clássica a observação de Narciso Orlandi Neto para quem a vontade do legislador se tornou o único critério distintivo entre as espécies inscritivas. Enfim, trata-se de mera atualização do antigo aforismo quod principi placuit legis habet vigorem.