Sobre a anticrese (primeira parte)

(da série Registros sobre registros n. 225)

 Des. Ricardo Dip

 

Consideremos agora o instituto da anticrese, de que disse Affonso Fraga ser, de todas as formas de direito real sobre coisa alheia, “a que oferece maior número de desvantagens e tão graves que em quase todos os países cultos, mesmo nos que a acolhem nos seus Códigos, vai-se tornando raríssimo o seu uso…” (Direitos reaes, item 130). Sem embargo da infrequência de sua utilização entre nós, manteve  a tratativa da anticrese o Código civil brasileiro de 2002, e não faltou que isto se louvasse (p.ex., na edição de 2003 –a 37ª– do Curso de direito civil -Direito das coisas de Washington de Barros Monteiro –cf. p. 397), ainda que tampouco ausentes críticas (assim a de Carlos Roberto Gonçalves, in Direito civil brasileiro, 2015, vol. 5, p. 647-8).

 

À margem de disputar-se doutrinariamente a natureza pessoal ou real da anticrese, vem esse instituto elencado entre os direitos reais previstos de maneira expressa no vigente Código Civil brasileiro (inc. X do art. 1.225) e até no mesmo Código se refere como garantia real (art. 1.419: “Nas dívidas garantidas por penhor, anticrese ou hipoteca, o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação”).

 

Alista-se a anticrese também no inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, como título suscetível de registro stricto sensu no ofício imobiliário (item 11), dispondo, adiante, o art. 241 da mesma lei que seu registro “no livro nº 2 declarará, também, o prazo, a época do pagamento e a forma de administração”.

 

Trata-se, pois, entre nós, de direito real sobre imóvel alheio –um parente pobre entre os direitos reais (Bonnecase, apud Washington de Barros Monteiro)–, imóvel de cuja posse se investe o credor anticrético, para desse prédio perceber frutos imputáveis ao pagamento só dos juros –ou dos juros e do capital– de uma dívida a que corresponda a garantia configurada com a anticrese.

 

879. Esse vocábulo anticrese provém do grego: Álvaro D’Ors aponta-lhe o significado de contragozo, é dizer, uma compensação: o do uso pecuniário compensado com a fruição da coisa garante; e Affonso Fraga, no já citado Direitos reaes de garantia, depois de referir-se à “vivíssima disputa” sobre a natureza do instituto, afirmou que para a quase totalidade dos filólogos e juristas “a anticrese consistia no uso ou gozo da coisa entregue pelo devedor ao credor para se ir pagando dos juros e principal do crédito: mutuus pignoris usus pro credito” (item 127). A principal dissidência filológica –a que com pouca simpatia ou nenhuma acenou Affonso Fraga (não deixando de apontar que essa tese divergente mereceu a adesão de Troplong)– proveio de Cláudio Salmásio (1588-1653), que, em seu De modo usurarum liber, sustentara, “profano em matéria jurídica” (é o juízo de Fraga), que a anticrese consistia num empréstimo recíproco: contrarium mutuum, alter mutual, alter remutual.

 

Entre nós, o Conselheiro Lafayette (in Direito das coisas, §168), apoiando-se em Jourdan e Troplong, entendia que, originariamente, o objeto próprio da anticrese apenas se limitava a compensar os juros mediante os frutos percebidos da posse da coisa. Todavia, como o excesso de valor desses frutos superasse o dos juros, terminou o instituto por estender-se, de maneira que “se diz haver sempre anticrese, quer os rendimentos sejam tão compensados nos juros, quer sejam também imputados no capital”.

 

880. Prevaleceu no direito brasileiro, como já ficou dito, a orientação de ser a anticrese uma das espécies de garantia real, como já o sintetizara Lacerda de Almeida: “direito real de perceber os frutos em desconto da dívida segundo as regras gerais da imputação em pagamento” (apud Fraga, item 129); não diversamente Lafayette (“…a anticrese é um direito real; e como tal adere à coisa e a acompanha por todas as mutações por que passa” –ibidem) e, de maneira menos concisa, Clóvis Beviláqua: “…direito real sobre imóvel alheio, em virtude do qual o credor obtém a posse da coisa, a fim de perceber-lhe os frutos e imputá-los no pagamento da dívida, juros e capital, sendo, porém, permitido estipular que os frutos sejam, na sua totalidade, percebidos à conta de juros” (in Comentários ao código civil, art. 805, observação n. 1).

 

Lacerda de Almeida e, abonando-o, Affonso Fraga ensinaram haver duas espécies de anticrese no direito brasileiro. Uma, como contrato autônomo; outra, como pacto adjeto à hipoteca. A essa divisão podem acrescentar-se ainda tanto a referência de Lafayette –que toma o vocábulo anticrese em dois sentidos: o da convenção e o do direito real correspondente–, quanto a classificação de Affonso Fraga, reportando-se às anticreses comum e a termo; aquela, a comum, em que o credor se empossa do imóvel da maneira imediata; a anticrese a termo, em que o apossamento pelo credor se condiciona ao inadimplemento do débito em dado tempo.

 

881. A Lei brasileira 1.237, de 24 de setembro de 1864, arrolara a anticrese entre os ônus reais (art. 6º), mas, como se tratava de uma normativa própria às hipotecas, não se expediu ali noção e disciplina alguma acerca da anticrese. Por sua vez, o Decreto 169-A/1890 (de 19-1), que revogou de modo expresso a Lei 1.237 –sem embargo de repetir-lhe amplíssima parte das disposições–, tampouco foi além dessa enunciação de a anticrese ser ônus real. Coube ao Código civil brasileiro de 1916, enfim, versar adequadamente a anticrese nos arts. 805 a 808, disciplina reiterada nos arts. 1.506 a 1.510 do Código civil atual, com a ressalva de alguma inovação em seu art. 1.510 e no § 1º do art. 1.507.

 

À partida, o caput do art. 1.506 de nosso Código civil de 2002 tratou de conceituar a anticrese, repisando-se ali sua extensão para abranger juros e capital, nos termos já indicados no Código anterior (caput do art. 805), adotando-se a restrição de apenas ter por objeto material um imóvel (diversamente do que ocorreu no direito romano), porquanto, fosse admitido abarcar uma coisa móvel, estar-se-ia diante do penhor (Washington de Barros Monteiro, o.c., p. 400). Além disso, o imóvel, que só pode ser dado em anticrese pelo titular de domínio, deve ainda ser alienável e estar in commercio, ou seja, ser de livre disposição: “Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca” (art. 1.420 do Código civil brasileiro de 2002). Todavia, também os titulares de domínio útil –o enfiteuta e o usufrutário– poderão instituir a anticrese, limitada, porém, quanto ao tempo, ao da duração do mesmo domínio útil (Fraga, o.c., item 145).

 

A anticrese exige a investidura possessória do credor, ou seja, para logo, a traditio rei immobilis: “A convenção por si só (nuda) não basta para transferir o direito anticrético ao credor; é mister a tradição do imóvel sobre o qual ela se constituir” (Lafayette).

 

Cabe aqui, porém, uma distinção: ainda que essa tradição imobiliária se expresse, no direito brasileiro, de modo simbólico (ou “espiritualizado”) por meio do registro predial, uma coisa é a inscrição para que a anticrese seja constituída e valha, pois, contra terceiros inclusive (pois que é direito real), e outra, diversa, é o fato mesmo da exigível tradição real (e não apenas a registrária) para que a anticrese se efetive –posta a salvo a situação potencial da anticrese a termo–, porque a posse do prédio pelo credor anticrético é uma condição necessária para o uso e fruição do imóvel.