(da série Registros sobre registros n. 205)
Des. Ricardo Dip
824. É certo que, estritamente, em sua letra, o art. 1.390 do nosso Código civil não manifesta a possibilidade de o usufruto recair sobre direito, diversamente do que, por exemplo, exprimem outros códigos, assim o português (art. 1.439º: “Usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância”) e o alemão, que disciplina especificamente a matéria (§§ 1.068 a 1.084).
Nada obstante, já o vimos, também no direito brasileiro é de admitir incida o usufruto sobre direitos, e, tanto possa recair sobre direitos reais imobiliários, o tema é de grande relevância para o registro predial, porque nosso Código civil, depois de preceituar considerarem-se imóveis para os efeitos legais “os direitos reais sobre imóveis e as ações que o asseguram” (inc. I), dispõe nos arts. 1.227 e 1.391 de nosso vigente Código civil: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código” (art. 1.227); “O usufruto de imóveis, quando não resulte de usucapião, constituir-se-á mediante registro no Cartório de Registro de Imóveis” (art. 1.391). Reitere-se, para sublinhar o ponto, que o art. 80 do Código civil brasileiro preceitua considerarem-se imóveis para os efeitos legais “os direitos reais sobre imóveis e as ações que o asseguram” (inc. I).
Faltando-nos, no Brasil, disciplina expressa acerca do usufruto sobre direitos –e ainda que pareça convir-lhe emprestar a regência do usufruto de coisas (o que é explícito na segunda parte do § 1.068 do BGB alemão: “Ao usufruto de direitos aplicam-se oportunamente as disposições sobre o usufruto de coisas…”)–, tem-se de examinar de maneira específica quais direitos reais imobiliários podem, entre nós, ser objeto de usufruto (cf. a lista de direitos reais sobre imóveis previstos no art. 1.225 do Código civil: propriedade, superfície, servidão, usufruto, uso, habitação, direito do promitente comprador do imóvel, hipoteca, anticrese, concessão de uso especial para fins de moradia, concessão de direito real de uso, direito de laje, rol a que parece deva ainda acrescer-se, em separado, a multipropriedade, objeto dos arts. 1.358-B et sqq. do mesmo Código).
825. Já ficou sobredito: não há em nosso ordenamento jurídico norma, qual, ad exemplum, a do direito alemão, que limita o usufruto sobre direitos à hipótese de sua intransmissibilidade (§ 1.069 do BGB).
Há situações, entretanto, no direito brasileiro em que, por natureza, não se admite o usufruto de um determinado direito real. Assim, manifestamente, não pode haver usufruto do direito real de habitação. É que o uso e o desfrute da habitação não podem ser cedidos nullo modo, conforme dispõe o art. 1.414 do Código civil: “Quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, o titular deste direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocupá-la com sua família”. Tal o diz Carlos Roberto Gonçalves, tem-se aí a incessibilidade tanto do direito de habitação, quanto de seu exercício, o que impossibilita seja a habitação objeto do usufruto, à medida em que este se define exatamente pelo uso e fruição da coisa.
Não diversamente, o uso tampouco pode ceder-se, dado o caráter com que esse direito se constitui, vinculado às necessidades próprias do usuário e de sua família (art. 1.412 do Código civil).
Devem examinar-se em separado dois outros reais relativos ao uso de imóveis: a concessão de direito real de uso e a concessão de uso especial para fins de moradia.
A primeira destas figuras –a concessão de direito real de uso– instituiu-se no direito brasileiro com o Decreto 271, de 28 de fevereiro de 1967, incluindo-se, com a Lei 11.481/2007 (de 31-5, art. 10), no elenco de direitos reais constantes do art. 1.225 do Código civil. Lê-se no art. 7º do Decreto 271:
“É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas” (este é o texto que por agora que lhe dá a Lei 11.481).
O objeto material, pois, dessa concessão tanto pode ser imóvel público (dominical: cf. inc. III do art. 99 do Código civil: são bens públicos dominicais os “que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades”), quanto pode ser imóvel de domínio particular.
Tratando-se de imóvel público, o correspondente regime jurídico é público, e o título idôneo a instituir a concessão de direito real de uso é de natureza administrativa: contrato administrativo ou mero termo administrativo (cf. § 1º do art. 7º do Decreto 271: “A concessão de uso poderá ser contratada, por instrumento público ou particular, ou por simples termo administrativo, e será inscrita e cancelada em livro especial”).
Prevista embora (e suposto sempre observada pela administração pública) a inscrição da concessão do direito real de uso de imóvel público “em livro especial”, isto não dispensa seu registro stricto sensu no ofício imobiliário, de conformidade com o que expressamente dispõe o item 40 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015/1973.
Tendo em conta a expressa referência no art. 7º do Decreto 271/1967 aos fins específicos a que se destina a concessão do direito real de uso, sua finalidade só pode ser a indicada em lei (Maria Sylvia Zanella Di Pietro); diz José dos Santos Carvalho Filho que “o concessionário não fica livre para dar ao uso a destinação que lhe convier, mas, ao contrário, será obrigado a destiná-lo ao fim estabelecido em lei, o que mantém resguardado o interesse público que originou a concessão real de uso” (Manual de direito administrativo, cap. 16, 4.4).
Voltemos à nossa indagação particular, neste capítulo: pode instituir-se usufruto sobre a concessão real de uso de imóvel público?
Para que se admita essa instituição deve pressupor-se que a concessão seja cedível. Hely Lopes Meirelles, distinguindo, de um lado, a concessão administrativa de uso (em que ao concessionário se outorga um direito pessoal, intransferível a terceiros), e, de outro lado, a concessão real de uso de bem público, segundo a regência do Decreto 271/1967, diz que esse direito real é “transferível a terceiros por ato inter vivos ou por sucessão legítima ou testamentária” (in Direito administrativo brasileiro, V, 5.4.3), averbando, entretanto, que “o imóvel reverterá à Administração concedente se o concessionário ou seus sucessores não lhe derem o uso prometido ou o desviarem de sua finalidade contratual” (VIII, 1.5.2.6).
Por sua vez, Diógenes Gasparini observou que a transferência da concessão, quer mediante ato inter vivos, quer mortis causa, pode ser “vedada ou não” (Direito administrativo, XIII-IV, 4.1), e parece forrar-se de razão, porque essa transferência –que, efetivamente, não se recusa expressamente no Decreto 271/1967– pode ser admitida ou interditada nas leis correspondentes (ou nos contratos celebrados entre as administrações públicas e os particulares concessionários). Não é mesmo incomum que as leis locais subordinem a transferência à prévia concordância da administração concedente.
Dessa maneira, desde que não haja vedação expressa (daí que, por evidente, não se exija previsão permissiva explícita) à transferência da concessão de direito real de uso de imóvel dominical em lei a tanto editada pelos estados, municípios ou o Distrito federal, é de concluir admissível a instituição de usufruto, contanto que se preserve o fim estrito da concessão.
Cabe ao registrador, pois, pressuposta a abertura da matrícula do imóvel dominical, verificar, na lei local aplicável e no contrato ou termo da concessão, se se admite ou não, com ou sem anuência da administração pública, a transferência do prédio, para, então, quando o caso de admitir-se com as condições legais, registrar o usufruto correspondente.
Por maioria de razão, cabe o usufruto da concessão de direito real de uso de imóvel particular.