(da série Registros sobre registros n. 204)
Des. Ricardo Dip
822. Examinemos, pois, se é juridicamente possível a instituição de usufruto sobre parte ideal de um imóvel, ou seja, sobre fração ideal de um condomínio de natureza ordinária –condomínio tradicional ou comum.
Já o Conselheiro Lafayette o admitia, nas páginas de seu Direito das coisas (§ 95):
“Não obsta que a coisa esteja em comum. Nesse caso, o usufruto recai na parte indivisa do condomínio que o institui, e os direitos do usufrutuário se rege, no que lhes for aplicável, pelos princípios que regulam a compropriedade.”
Nesse mesmo sentido a previsão do art. 490 do Código civil da Espanha: “El usufructuario de parte de una cosa poseída en común ejercerá todos los derechos que correspondan al propietario de ella referentes a la administración y a la percepción de frutos o intereses. Si cesare la comunidad por dividirse la cosa poseída en común, corresponderá al usufructuario el usufructo de la parte que se adjudicare al propietario o condueño”.
Diz, a propósito, Luis Díez-Picazo que de dois modos pode exercer-se por terceiro o uso e desfrute de uma parte de imóvel em comunhão. Num primeiro modo, mediante uma relação de caráter obrigacional, com amparo no que dispõe o art. 399 do Código espanhol: “Todo condueño tendrá la plena propiedad de su parte y la de los frutos y utilidades que le correspondan, pudiendo en su consecuencia enajenarla, cederla o hipotecarla, y aun sustituir otro en su aprovechamiento, salvo si se tratare de derechos personales. (…)” (o itálico não é do original). Por um segundo modo, referível ao usufrutcto de cuota (art. 499), confere-se ao usufrutário “no sólo el derecho a percibir los frutos, sino también la posibilidad de ejercitar las facultades que corresponden al propietario con referencia a la administración y gobierno de la cosa” (in Fundamentos del derecho civil patrimonial, II-797).
Observemos que, tal o disse Lafayette, o usufruto de parte do imóvel exige o respeito aos princípios regentes da comunhão; assim, o uso e a fruição da parte do imóvel estará sempre sujeita aos limites próprios a que também estão submetidos os mesmos condôminos, a saber: (i) a conformidade com a destinação econômica do prédio –isto é, com os fins que, por natureza ou pela vontade dos comproprietários, possua o imóvel cuja parte foi dada em usufruto (lê-se na parte inicial do art. 314 do Código civil brasileiro: “Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação…”) ; (ii) o interesse da mesma comunidade dominial; (iii) o resguardo do direito dos condôminos. Essas indicações, que dizem com a natureza mesma da compropriedade, são expressas no Código civil espanhol: “Cada partícipe podrá servirse de las cosas comunes, siempre que disponga de ellas conforme a su destino y de manera que no perjudique el interés de la comunidad, ni impida a los copartícipes utilizarlas según su derecho” (art. 394).
Embora não haja, no direito brasileiro posto, norma equivalente à do art. 499 do Código da Espanha, reportada especificamente ao usufruto, pode ler-se, contudo, no caput do art. 1.314 de nosso vigente Código civil que “cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la” (a ênfase gráfica não é do original). Há, todavia, a necessidade do consenso dos comunheiros: “Nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros” (par.único do art. 1.314; note-se que essa regra não sofre, quanto ao usufruto, a exceção que beneficia a hipoteca: “A coisa comum a dois ou mais proprietários não pode ser dada em garantia real, na sua totalidade, sem o consentimento de todos; mas cada um pode individualmente dar em garantia real a parte que tiver” – § 2º do art. 1.420).
Outro argumento que prestigia a admissão do usufruto de parte ideal pode recolher-se da norma que consagra –salvo expressa disposição em contrário– a extinção parte a parte do usufruto, pois, dando-se o caso de consolidar-me uma das partes, a outra permanecerá concedida ao uso e fruição de terceiro (art. 1.411 do Código civil: “Constituído o usufruto em favor de duas ou mais pessoas, extinguir-se-á a parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, o quinhão desses couber ao sobrevivente”).
823. Pode o usufruto recair sobre direitos, incluindo os reais e, entre eles, ter por objeto outro usufruto?
À pergunta se os direitos podem ser objeto de usufruto, Carvalho Santos responde, de maneira incisiva: “Sem dúvida que sim”. E prossegue, argumentando, à luz do então vigente Código civil brasileiro de 1916, que seu art. 714 (correspondente ao agora vigorante art. 1.390 do Código de 2002) previa por objeto material passível de usufruto os bens móveis ou imóveis, e entre os imóveis contavam-se os direitos reais imobiliários (art. 44 do Código de 1916; ou, agora, art. 80 do Código de 2002: “Consideram-se imóveis para os efeitos legais: I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram”). Também nessa linha, a doutrina portuguesa (cf., brevitatis causa, Rui Pinto Duarte, ao dizer que “o usufruto pode ter por objecto não apenas coisas corpóreas como direitos”).
Acrescente-se que, prevendo o art. 1.390 do Código civil brasileiro que o usufruto possa recair sobre um patrimônio inteiro, já isso inclui a admissão de incidir sobre direitos. Também assim o referiu Martin Wolf para o direito alemão: o usufruto sobre direitos, disse ele, “surge na vida jurídica quase exclusivamente como parte do usufruto sobre um patrimônio” (Tratado de derecho civil, § 120-I).
Ainda mais: o § 2º do art. 1.407 de nosso Código civil de 2002 prevê o direito de o usufrutuário sub-rogar-se no valor da indenização do seguro do bem objeto do usufruto. No mesmo sentido, para o direito germânico, Hedemann (Tratado de derecho civil, § 38-4, b). Não diversamente, o art. 1.409 do Código trata da sub-rogação em prol do usufrutuário quanto à indenização paga pelo prédio na hipótese de sua desapropriação. Cuida-se, pois, em ambas as situações, de usufruto de direito, ainda que também recaia sobre o objeto desse direito (diz Enneccerus que é exato e consequente afirmar que o usufruto não incide só sobre o objeto, mas, sim, também sobre o direito correspondente -cf. Tratado de derecho civil, § 70-5, nota 8).
Não são, porém, todos os direitos reais que podem ser objeto de usufruto.
Sublinhe-se que, no direito alemão, podem apenas ser objeto de usufruto os direitos reais transmissíveis, à conta do que dispõe o § 1.069 do BGB: “Sobre um direito que não é transmissível não pode constituir-se um usufruto”.
Não temos no ordenamento brasileiro norma equivalente a essa do direito germânico, o que exige uma análise sistemática do tema.