Marcelo Lessa da Silva
Os cartórios geram economia bilionária. Com R$ 8,3 bi em economia e a maior confiança popular, a extrajudicialização é a resposta. Uma análise técnica contra os retrocessos da reforma administrativa.
O sistema judiciário brasileiro enfrenta um desafio estrutural de longa data: a hiperjudicialização. Ao final de 2023, o Poder Judiciário encerrou o ano com um acervo de 83,8 milhões de processos em tramitação, o maior número da série histórica. Esse volume colossal de demandas resulta em uma morosidade que compromete a eficácia da prestação jurisdicional. Um processo de execução fiscal, por exemplo, levou, em média, 7 anos e 9 meses para ser baixado em 2023. Diante da constatação de que o Estado-juiz, por si só, não conseguiria arcar com essa entrega, o ordenamento jurídico brasileiro vem passando por uma profunda transformação. Liderada tanto pelo legislador como também pelo próprio CNJ, essa mudança se materializa no fenômeno da desjudicialização - ou, como preferimos denominar, da extrajudicialização: ampliação de atribuições para o foro extrajudicial.
O termo "extrajudicialização" é mais adequado, pois não se trata de uma "retirada" de atribuições do Poder Judiciário, mas de um compartilhamento de competências. O foro extrajudicial recebe novas funções sem qualquer prejuízo ao acesso ao Judiciário, que, inclusive, mantém seu papel central como órgão regulador, fiscalizador e normatizador da atividade, em uma relação de mútua colaboração. Este artigo visa trazer reflexões sobre este modelo de sucesso, contrapondo seus resultados concretos às teses levantadas no âmbito da reforma administrativa (PEC 32/20) que, ao partirem de premissas equivocadas, ameaçam descaracterizar um sistema que comprovadamente funciona fora da estrutura estatal, apesar de sua significativa contribuição com o Estado, principalmente como um dos atores sociais do atual modelo brasileiro de justiça multiportas representando uma porta tangível de acesso aos jurisdicionados.
1. O modelo de extrajudicialização sob a égide da Constituição de 1988: Eficiência privada e controle público
O sistema notarial e registral brasileiro é um arranjo institucional híbrido, estabelecido pelo constituinte originário de 1988 consignado no art. 236 da CRFB. A titularidade do serviço é pública, garantindo que a fé pública e a segurança jurídica sejam exercidas como uma função do Estado. No entanto, a gestão é inteiramente privada, exercida por um delegatário aprovado em concurso público que assume todos os custos e riscos da atividade. Isso significa que nenhum recurso do orçamento público é destinado à manutenção das 12.512 serventias extrajudiciais do país. Toda a infraestrutura - prédios, tecnologia, digitalização, pessoal e modernização - é custeada integralmente pelos titulares dos cartórios.
Essa estrutura, fiscalizada de forma permanente e rigorosa pelo Poder Judiciário, gera uma combinação virtuosa: a segurança de um serviço estatal com a eficiência da gestão privada. Como bem define o Desembargador José Renato Nalini, ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, os cartórios são "sentinelas da segurança jurídica em negócios e atos de grande relevância à garantia do exercício da cidadania" e "verdadeiro celeiro de boas práticas". Ele enfatiza que o modelo de delegação a um particular, "pessoa tangível, suscetível de responder por dolo ou culpa", é um diferencial de responsabilidade e eficácia que "o Estado, sozinho, é incapaz de oferecer".
2. Mitos e fatos da atividade notarial e registral no debate da reforma administrativa
2.1 O modelo pós-1988 e a vedação ao retrocesso
Antes da Constituição de 1988, o modelo era predominantemente estatal, custeado pelo orçamento público e marcado por infraestrutura precária. A mudança para o sistema atual representou um avanço inequívoco. Propostas que flertam com a "reestatização" dos serviços ignoram este histórico e representariam uma clara violação ao princípio da vedação ao retrocesso social. Significaria retornar a um sistema mais oneroso para a sociedade e comprovadamente menos eficiente, trocando um modelo que investe capital privado em modernização por um que dependeria de um orçamento público já sobrecarregado.
2.2 O mito do alto faturamento e a realidade dos emolumentos
Uma crítica recorrente no debate público refere-se ao alto faturamento de algumas serventias, o que alimenta propostas de criação de um teto remuneratório. Tal visão ignora que a alta lucratividade é uma exceção e não a regra. No Brasil, existem 2.602 cartórios considerados deficitários, que não se sustentam com a própria receita e dependem de fundos de compensação, custeados pelos cartórios maiores.
É crucial esclarecer que o delegatário não tem qualquer ingerência sobre os valores cobrados. A tabela de emolumentos é fixada por lei estadual, após um processo de análise e planejamento conduzido pelo Poder Judiciário local, que envia o projeto de lei para a respectiva casa legislativa. Portanto, a responsabilidade por eventuais disparidades de valores recai sobre os poderes Judiciário e Legislativo de cada estado, e não sobre o titular do cartório. Uma solução construtiva para as discrepâncias existentes seria a busca por uma tabela nacional de emolumentos, fruto de um pacto coordenado pelo CNJ com os tribunais estaduais, que respeitaria a autonomia federativa ao mesmo tempo em que traria mais uniformidade ao sistema.
2.3 Teto remuneratório e a inaplicabilidade ao regime privado
A proposta de um teto remuneratório, análogo ao do funcionalismo público, é juridicamente e administrativamente inaplicável ao modelo. O titular do cartório não é um servidor público que recebe um salário do Estado; ele é um gestor privado que arca com todas as despesas operacionais: aluguel, tecnologia, insumos e, principalmente, a folha de pagamento de mais de 104 mil funcionários contratados pelo regime da CLT. Como ressalta Nalini, a responsabilidade "recai sobre um particular. O bônus e o ônus. Pessoa tangível, suscetível de responder por dolo ou culpa".
A receita bruta de um cartório não representa o lucro do titular. Deste montante são descontados todos os custos operacionais, impostos (ISS, Imposto de Renda) e os repasses legais para o Estado - que em alguns estados superam 50% dos emolumentos. Aplicar um teto à receita bruta inviabilizaria a operação das grandes serventias e desincentivaria o investimento. A questão que se impõe é: a reforma pretende legislar com base na exceção que representa menos de 10% da totalidade dos cartórios, ignorando a complexidade e os riscos do negócio?
3. A extrajudicialização como vanguarda tecnológica
Longe de ser uma estrutura arcaica, a atividade notarial e registral brasileira tem estado na vanguarda da modernização e da transformação digital. A lei 14.382/22, que instituiu o SERP - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, é o mais recente e ambicioso passo nessa direção. O SERP é a interconexão de todas as serventias do país em uma única plataforma digital, permitindo a prática de atos de forma totalmente remota, com o uso de assinaturas eletrônicas e videoconferências, além de facilitar o acesso a informações e certidões de qualquer lugar do Brasil.
Essa iniciativa se soma a outras já consolidadas, como a plataforma e-Notariado, que desde 2020, por meio do provimento 100/20 do CNJ, permite a realização de escrituras, procurações e outros atos notariais de forma 100% digital. A tecnologia de ponta, financiada integralmente pelo setor privado, garante não apenas agilidade, mas também um altíssimo nível de segurança, com o uso de certificados digitais e tecnologias de criptografia.
4. Validação internacional e alcance social
O sistema notarial de tipo latino, adotado no Brasil, está longe de ser uma anomalia. Ele é o modelo vigente em 91 países, incluindo 15 das 20 nações que compõem o G20, como Alemanha, França, Itália, Japão, México, Rússia e Argentina. Este sistema é reconhecido internacionalmente por sua capacidade de aliar a segurança jurídica da fé pública estatal com a eficiência da gestão privada, sendo um pilar na prevenção de litígios.
No âmbito social, a capilaridade dos cartórios é um instrumento de cidadania. Foram eles os principais responsáveis pela erradicação do sub-registro civil no Brasil, que hoje ostenta um índice de apenas 1% de crianças sem certidão de nascimento, considerado pela ONU como tecnicamente superado. As serventias atuam em comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas, muitas vezes sendo a única presença organizada que garante o acesso a documentos básicos.
Conclusão: Aprimorar, não descaracterizar
A análise dos fatos e dados demonstra que os serviços notariais e registrais no Brasil não são parte do problema administrativo do Estado, mas sim um componente fundamental da solução. O modelo de delegação a particulares, sob rigorosa fiscalização do Judiciário, provou ser altamente eficiente, econômico e essencial para a garantia de direitos. As propostas de alteração no âmbito da Reforma Administrativa partem de premissas equivocadas e representam um grave risco de retrocesso. A verdadeira modernização do Estado passa por reconhecer e fortalecer modelos de sucesso, sem prejuízo de aprimoramentos contínuos, como a busca por maior uniformidade nos emolumentos e a expansão dos serviços digitais. Conclui-se que a preservação do modelo, nos termos definidos pelo constituinte originário de 88 consignados no art. 236 da Constituição Federal, é essencial para a manutenção da segurança jurídica e da eficiência nos serviços prestados à população brasileira.
Referências
DIAS, Eduardo Rocha; SALES, Lília Maia de Morais; SILVA, Marcelo Lessa da. Notários e registradores: protagonistas de um novo sistema de acesso à justiça no Brasil. Scientia Iuris, Londrina, v. 26, n. 3, p. 32-50, nov. 2022.
ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL (ANOREG/BR). Cartório em Números: Especial Desjudicialização. 6ª Edição. Brasília: Anoreg/BR, 2024.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Justiça em Números 2024: ano-base 2023. Brasília: CNJ, 2024.
NALINI, José Renato. Discurso proferido no primeiro painel sobre "O Marco legal do Registro de Imóveis Eletrônico e Medida Provisória 759/2016". 1º Seminário Brasileiro das Centrais de Registro de Imóveis, 2016.
NALINI, José Renato. Entrevista realizada pela Arpen/SP. O extrajudicial descobriu o caminho da eficiência, 2013.
Legislação Citada
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República.
BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro.
BRASIL. Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem.
BRASIL. Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007. Dispõe sobre a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa.
BRASIL. Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022. Dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp).
BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o Marco Legal das Garantias.
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 32, de 2020. (Reforma Administrativa). Câmara dos Deputados.
Fonte: Migalhas