Por Paulo Henrique Alves Braga
A jurisprudência brasileira tem convivido, por quase duas décadas, com uma aplicação expansiva da Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça. Criado para proteger adquirentes de imóveis contra hipotecas de construtoras, o enunciado passou a ser aplicado de forma indiscriminada a contratos de alienação fiduciária em garantia, um instituto com regime jurídico e natureza completamente distintos.
Essa interpretação analógica, embora motivada pela proteção ao consumidor, gerou disfunções no sistema de garantias imobiliárias, comprometendo a segurança jurídica e a previsibilidade no mercado de crédito. Diante dessa distorção, a 4ª Turma do STJ, ao julgar o Recurso Especial nº 2.130.141/RS, proferiu um acórdão paradigmático. A decisão firmou o entendimento categórico de que a Súmula 308/STJ é inaplicável à alienação fiduciária.
O precedente é um marco para o ordenamento jurídico, pois reafirma a autonomia normativa da alienação fiduciária e restabelece a legalidade estrita na aplicação de enunciados sumulares. O tribunal reconheceu que a propriedade resolúvel do bem, transferida ao credor fiduciário, impede a validade de atos de disposição unilaterais do fiduciante, conforme o artigo 29 da Lei nº 9.514/1997. Trata-se de um julgado de elevada importância, que fortalece a tipicidade dos direitos reais, a função publicitária do registro de imóveis e a previsibilidade das garantias contratuais.
Origem da Súmula 308 e equívocos na aplicação analógica
A Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça foi editada para proteger adquirentes de imóveis que, mesmo adimplentes, eram surpreendidos por hipotecas de construtoras em favor de agentes financeiros. A ratio decidendi do enunciado está intimamente ligada à lógica da hipoteca, na qual o devedor mantém a titularidade do bem. Essa moldura interpretativa é essencial para a correta compreensão da súmula, que não pode ser desvinculada de seus pressupostos materiais e normativos.
Contudo, a jurisprudência passou a aplicar a súmula, por analogia imprópria, à alienação fiduciária em garantia. Essa extensão interpretativa contraria o princípio da legalidade estrita e o regime jurídico autônomo da propriedade fiduciária, delineado pela Lei nº 9.514/1997. A alienação fiduciária, ao contrário da hipoteca, transfere a propriedade resolúvel do bem ao credor. O fiduciante retém apenas a posse direta e, por isso, não tem legitimidade para alienar o imóvel sem a anuência do credor fiduciário, conforme o artigo 29 da lei.
Apesar dessas diferenças estruturais, a jurisprudência consolidou a aplicação analógica da Súmula 308 aos contratos fiduciários, desconsiderando os elementos técnicos que distinguem os dois institutos. Essa ampliação interpretativa comprometeu princípios fundamentais do direito privado, como a tipicidade dos direitos reais e a publicidade registral. A analogia introduziu insegurança nas relações jurídicas e gerou instabilidade no mercado de crédito imobiliário, cuja estruturação depende da hierarquização clara dos direitos reais registrados.
O julgamento do REsp nº 2.130.141/RS representa uma inflexão jurisprudencial crucial. Ao abordar, com rigor técnico e fundamentação normativa, a inadequação da analogia entre hipoteca e alienação fiduciária, a corte restabeleceu os contornos do enunciado sumular e afastou, de modo categórico, sua incidência sobre as relações regidas pela Lei nº 9.514/1997. Este é um passo fundamental para a recuperação da coerência do sistema de garantias reais e para a preservação da confiança nos efeitos do registro imobiliário.
Virada jurisprudencial no REsp 2.130.141/RS
No julgamento do Recurso Especial nº 2.130.141/RS, o Superior Tribunal de Justiça enfrentou uma controvérsia crucial: a tentativa de fazer prevalecer um contrato particular de promessa de compra e venda, firmado sem a anuência do credor, sobre um direito real de alienação fiduciária devidamente registrado. A decisão de origem, em uma clara inversão da hierarquia registral, havia considerado eficaz a negociação dos terceiros adquirentes, baseando-se em uma equivocada analogia com a Súmula 308/STJ.
A 4ª Turma do STJ promoveu, então, uma inflexão jurisprudencial relevante. A corte reconheceu que a alienação fiduciária, regida pela Lei nº 9.514/1997, é um instituto autônomo, cuja estrutura jurídica é incompatível com a hipoteca. Diferentemente da hipoteca, a alienação fiduciária transfere a titularidade do imóvel ao credor fiduciário em caráter resolúvel. Dessa forma, o devedor fiduciante retém apenas a posse direta e não possui legitimidade para alienar o bem sem o consentimento do proprietário formal.
O acórdão firmou o entendimento de que um contrato particular firmado à revelia do credor fiduciário é ineficaz em relação a este, não sendo apto a produzir efeitos oponíveis ao direito real devidamente constituído no registro de imóveis. Essa conclusão reforçou os pilares do sistema registral, como a publicidade, a fé pública e a prioridade. O julgamento também rejeitou a equiparação da administradora de consórcios à figura do “agente financeiro” da súmula, destacando que essa extensão interpretativa carece de fundamento.
Ao corrigir esse desvio jurisprudencial, o precedente não apenas fortaleceu a proteção das garantias fiduciárias, mas também preservou a previsibilidade dos contratos imobiliários e a estabilidade do mercado de crédito. A decisão reafirmou a importância do registro imobiliário como mecanismo de proteção dos direitos reais, reforçando os limites do enunciado sumular frente à estrutura normativa da alienação fiduciária.
Fundamentação do acórdão: segurança jurídica e respeito à legalidade
No julgamento do REsp nº 2.130.141/RS, a 4ª Turma do STJ, sob a relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, fixou uma diretriz crucial: afastar a aplicação da Súmula 308/STJ aos contratos de alienação fiduciária. O acórdão reconheceu que estender esse enunciado a um regime jurídico próprio configura uma extrapolação de seu escopo normativo, afrontando os princípios estruturantes do sistema registral.
A decisão assentou, com clareza técnica, a distinção fundamental entre hipoteca e alienação fiduciária. Na hipoteca, o devedor mantém a titularidade plena do bem. Na alienação fiduciária, a propriedade é transferida ao credor, subsistindo ao devedor apenas a posse direta. Essa diferença ontológica impede que o fiduciante realize negócios jurídicos com terceiros sem a anuência do credor fiduciário. Como destaca o voto condutor:
“Enquanto o devedor hipotecário detém a propriedade, o devedor fiduciante possui apenas a posse direta do imóvel, sendo o negócio jurídico celebrado com terceiro de boa-fé, por conseguinte, ineficaz em face do proprietário do bem, o credor fiduciário.”
A corte também rechaçou a tentativa de equiparar o credor fiduciário, como uma administradora de consórcio, ao “agente financeiro” da súmula. A decisão ressaltou que esse termo possui contornos normativos específicos do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), não cabendo sua transposição a outras relações fiduciárias.
Ao enfrentar a extensão indevida da súmula, o STJ corrigiu uma trajetória jurisprudencial consolidada em analogias impróprias. Este é o primeiro enfrentamento aprofundado do tema, permitindo a consolidação de uma orientação mais coerente com os fundamentos da propriedade fiduciária. O acórdão marca um ponto de inflexão, pois reforça os princípios da legalidade estrita, da tipicidade dos direitos reais e da fé pública registral, garantindo a função estabilizadora do sistema de garantias.
A nova orientação, ao restabelecer a coerência interpretativa, protege o crédito garantido e a estabilidade das relações patrimoniais. O julgamento impede a diluição de categorias jurídicas autônomas, evitando que a jurisprudência atue em detrimento do regime legal expressamente instituído.
Impactos jurídicos e econômicos do precedente
A decisão do Recurso Especial nº 2.130.141/RS projeta efeitos substanciais tanto no plano jurídico quanto no econômico, ao delimitar o alcance da Súmula 308/STJ. O julgado reafirma a necessidade de observância estrita aos contornos legais da alienação fiduciária, um sistema que não se confunde com a lógica da hipoteca. Essa clareza contribui decisivamente para a estabilidade e a coerência do sistema de garantias imobiliárias no Brasil.
Sob a ótica jurídica, a decisão fortalece a aplicação da Lei nº 9.514/1997, reconhecendo que a alienação fiduciária é um instituto autônomo. O acórdão distingue com precisão a transferência da propriedade resolúvel ao credor fiduciário—traço essencial da alienação fiduciária—da mera constituição de um direito real de garantia sobre bem alheio, característica da hipoteca. Com isso, restabelece a tipicidade das garantias reais e a centralidade do registro público como instrumento de publicidade, eficácia e oponibilidade.
No plano econômico, os reflexos são igualmente expressivos. Ao afastar a aplicação analógica da Súmula 308/STJ, a corte elimina um significativo fator de insegurança que impactava a concessão de crédito garantido, especialmente por agentes não bancários. A aplicação indevida da súmula criava incerteza quanto à eficácia das garantias, afetando a confiança dos credores e elevando o custo das transações.
Dessa forma, a decisão contribui para o fortalecimento da solvência das garantias fiduciárias, reduzindo o risco sistêmico e preservando a atratividade do modelo fiduciário. O precedente, além de corrigir uma distorção jurisprudencial, reafirma o papel do Judiciário na proteção da ordem normativa, garantindo a estabilidade das relações civis e comerciais regidas por leis específicas.
Estabilidade normativa do sistema de garantias
O julgamento do Recurso Especial nº 2.130.141/RS é um marco de estabilização e racionalidade no campo das garantias imobiliárias. Ao reconhecer a inaplicabilidade da Súmula 308/STJ à alienação fiduciária, o acórdão corrigiu uma jurisprudência que, sob a justificativa de proteger o adquirente, fragilizava o sistema registral e a segurança das relações baseadas em direitos reais.
A decisão reafirma a especificidade da alienação fiduciária, que possui regime jurídico próprio pela Lei nº 9.514/1997. A estrutura desse instituto não admite analogias com a hipoteca, pois o credor fiduciário detém a titularidade resolúvel do imóvel. O fiduciante, por sua vez, tem apenas a posse direta e, portanto, não pode alienar o bem sem a anuência do proprietário registral. Ignorar essa dinâmica comprometeria os princípios da tipicidade, publicidade e oponibilidade registral, pilares do direito civil.
Ao afastar interpretações expansivas da súmula e restabelecer os limites das garantias fiduciárias, o STJ promove a previsibilidade contratual, a segurança jurídica dos registros públicos e a integridade das relações econômicas. O precedente reforça a confiança de agentes financeiros e investidores no modelo fiduciário como um instrumento legítimo, eficiente e seguro.
Em suma, o julgado é um divisor de águas que reconduz a jurisprudência aos trilhos da legalidade estrita e da coerência normativa. Seus efeitos são positivos para a estabilidade do sistema de garantias reais, a confiabilidade do registro de imóveis e a racionalidade das relações contratuais no mercado imobiliário brasileiro.
Referências
BRASIL. Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 2.194.094/RS. Relator: Ministro Moura Ribeiro. 3ª Turma. Julgado em 29 jun. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.130.141/RS. Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira. Quarta Turma. Julgado em 03 abr. 2025.
CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária – Negócio Fiduciário. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, ISBN 9788530991012.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Vol. 5 – Direito das Coisas – 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
NUNES, Arthur Bittar Rodrigues. A aplicação analógica da Súmula 308 do STJ à alienação fiduciária. Revista de Direito Imobiliário, v. 46, n. 94, p. 29-43, jan.-jun. 2023.
SOUSA, Rafael Souza de. Patrimônio de afetação e o caso Encol. Jusbrasil, 2016. Disponível aqui.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Comentários à Súmula 308. Revista Eletrônica de Jurisprudência, n. 24, 2011. Disponível aqui.
Fonte: Conjur