Des. Ricardo Dip
Como se disse nas duas mais recentes explanações desta série «Claves notariais e registrais», a projetada extinção, entre nós, do processo habilitante do matrimônio civil tem expressiva relação com a crise contemporânea que aflige, em todo o Ocidente, as instituições da família e do casamento.
Antes de prosseguir na análise singular dessa extinção e do que se prognostica discretamente de seus efeitos, bem como no exame da relevância que −mais uma vez− há de assumir, nesse quadro futuro, o registro civil das pessoas naturais (instituição que muito merece o reconhecimento de seu vulto social e político), não parece demasia um breve excurso em que se considere uma interpelação: pode a crise atual da família e do matrimônio vir a superar-se?
Para não ficar na mera conjectura de um fenômeno contingente, quero invocar aqui, por seu caráter muito emblemático, um episódio histórico em que se recobraram as características objetivas e naturais do casamento e da família.
Tenham todos paciência com isto, pois vamos ao século VIII da Península ibérica. Era o ano de 711, e os visigodos do Rei Rodrigo foram vencidos na Batalha de Guadalete: os povos árabes, então vencedores, rumaram para o leste e o norte da Península, além de dirigir-se ainda ao sul da Europa, até serem barrados nas Batalhas de Poitiers (732) e, antes, de Covadonga (c. 722).
Foi muito variada a implantação dos invasores na Península ibérica, e, entre outros fatores (alguns, benignos), sua influência foi intensa na «normalização» da poligamia: a fornicação e o adultério passaram a ser práticas habituais entre os hispânicos.
Tenhamos em conta alguns exemplos da história de Portugal:
- o Rei Dom Sancho I (1154-1211), que foi o segundo monarca português, além de muitos filhos legítimos, teve inúmeros bastardos, entre eles uma filha, Dona Berengária, que foi Rainha da Dinamarca;
- ao tempo do reinado de seu bisneto, o Rei Dom Dinis (1261-1325), houve um grave conflito envolvendo um filho legítimo desse monarca (que seria depois Dom Afonso IV, Rei de Portugal) e um bastardo (Dom Afonso Sanches);
- um tempo adiante, encontramos o Rei Dom Pedro I (1320-1367), que, além do filho legítimo −que veio a ser o Rei Dom Fernando I (aquele «fraco rei −disse Camões− que fez fraca a forte gente»)−, teve dois outros filhos com Dona Inês de Castro e um terceiro, com Dona Teresa Lourenço, filho este último que, tornado Mestre de Aviz, ascenderia ao Trono de Portugal, com o nome de Dom João I (1357-1433).
- três anos depois do nascimento desse primeiro rei da dinastia de Aviz, nasceu Dom Nuno Álvares Pereira, 13º filho bastardo −de um total de 32, todos ilegítimos− de Dom Álvaro Gonçalves Pereira, que era então o Prior do Crato −ou seja, o chefe da Ordem dos Hospitalários. Por sua vez, o mesmo Dom Álvaro Gonçalves Pereira era filho (também ilegítimo) de Dom Gonçalo Pereira, Arcebispo de Braga.
Estes poucos episódios são suficientes para induzir que a fornicação e o adultério, comuns entre os reis, os nobres e os clérigos daquele tempo de Portugal, espelhavam −mas, ao mesmo tempo, fomentavam pelo «exemplo»− os costumes do povo, ainda que não impedissem de todo alguma reação em contrário (p.ex., as conhecidas insurreições populares mal sucedidas contra o casamento do Rei Dom Fernando I com Dona Leonor Teles de Menezes, que já era então casada com João Lourenço da Cunha, o Senhor de Pombeiro).
Diante desse quadro mais que secular da sociedade portuguesa, como é possível explicar que, contra uma probabilidade manifesta, pudesse dar-se que, passadas algumas poucas gerações desde que Dom João I (o Mestre de Aviz) assumira o Trono português (isso ocorreu em 6 de abril de 1385), pudesse dizer-se que entre os portugueses se praticavam as virtudes morais, de modo estendido e tão egrégio, que se podia afirmar que Portugal era a mais eminente cristã das nações de seu tempo?
Centremos as atenções em duas figuras: Dona Filipa de Lancaster (ou de Lencastre, como preferem dizer os portugueses) e o já mencionado Dom Nun'Álvares Pereira.
O Rei Dom João I, antes de elevar-se ao Trono, tivera um filho ilegítimo, Dom Afonso, resultado de uma relação fornicária com Dona Inês Pires (ou Inês Peres). Esse Dom Afonso, perfilhado já em idade adulta, veio a tornar-se Conde de Barcelos (por dote de Dom Nuno Álvares Pereira, com cuja filha, Dona Beatriz Alvim Pereira, aquele se casara) e, adiante, Duque de Bragança (vale dizer que ele inaugurou a linhagem do que viria a ser a Casa real brasileira, reinante até 1889, e a de Portugal, derrubada pelo golpe republicano de 1910).
Acontece que, aclamado rei, Dom João I casou-se com uma princesa inglesa, Dona Filipa de Lencastre (1360-1415), de quem Fernão Lopes louvará os «costumes e bondade», assinalando-lhe a vida piedosa, alimentada de cotidianas práticas cristãs da oração, a ponto de, ainda em vida, ser chamada de «santa».
Depois de seu casamento com Dona Filipa, nenhuma notícia há de que Dom João I tenha caído em adultério. O fato é que, dos filhos do casal −os infantes Dom Duarte (depois, Rei de Portugal), o regente Dom Pedro, Dom Henrique, Dona Isabel, Dom João (o Mestre de Santiago) e Dom Fernando, o mártir da fracassada aventura de Tânger−, pôde Luís de Camões dizer, na estância 50 do canto IV de Os Lusíadas, tratar-se da «ínclita geração, altos infantes». Prodigiosa geração, de fato, desde o Rei Filósofo ao Sábio Regente, do Destemido Navegador −que começou a estender Portugal para fora da Europa− à contribuição de Dona Isabel à governança da Borgonha, do Infante Dom João (que fez construir a Igreja do Mosteiro de Palmela e casou-se com uma neta de Dom Nun'Álvares Pereira) ao Infante Santo, trucidado em Marrocos. Infantes de bons costumes, infantes de virtudes sólidas, infantes que influíram decisivamente nas gerações que os sucederam.
Mas passemos a outro nome: o Condestável Dom Nuno Álvares Pereira (1360-1431). É frequente referir-se a seu gênio militar, a que se tributa a surpreendente derrota dos castelhanos liderados pelo Rei Dom Juan I, na Batalha de Aljubarrota (1385 −que, de início, dizia-se "Batalha Real", ou simplesmente "A Batalha"). Pois bem, de Dom Nun'Álvares, disse o historiador português José Hermano Saraiva estar o Condestável para Portugal, quanto Santa Joana D'Arc para a França, tamanho seu papel histórico para a preservação da independência portuguesa (lembremo-nos de que o Rei de Castela, Dom Juan I, casara-se com a infanta Beatriz, filha de Dom Fernando I, Rei de Portugal, e de Dona Leonor Teles de Menezes, de modo que, morto Dom Fernando em 1383, sustentava Dom Juan de Castela sua legitimidade ao trono português).
Em reconhecimento dos muitos méritos do Condestável, deu-se que o efetivo sucessor de Dom Fernando I, sucessor que foi escolhido pelo povo português e aclamado rei nas Cortes de Coimbra, Dom João I −o antigo Mestre de Aviz−, doou a Dom Nun'Álvares Pereira os três condados que então havia em Portugal: o de Barcelos, o de Arraiolos e o de Ourém, de par com muitas vilas, de maneira que o Condestável se tornou dono de mais imóveis no território português do que o próprio Reino de Portugal. Coisa sem dúvida extraordinária e digna de muita admiração é pensar, entretanto, que Dom Nuno − o "Nuno fero −disse Camões− que fez ao Rei e ao Reino tal serviço"−, sendo tão rico de bens materiais (era dono de quase metade de Portugal), doou todos seus bens aos netos e a seus servidores, passando a viver, a partir de 1423, no Convento lisboeta do Carmo (convento que ele próprio fizera construir). O Condestável elevou-se aos altares da Igreja, em 2009, com seu nome carmelitano de S. Nuno de Santa Maria.
Três ou quatro gerações após a instauração da dinastia de Aviz, graças, humanamente, à conta do exemplo dos bons costumes de Dona Filipa de Lencastre, dos altos infantes da ínclita geração e de Dom Nun'Álvares, Portugal, ao lado de Castela (também de Inglaterra e França), fez-se um dos mais poderosos reinos de todo o mundo, do qual reino português, de par com sua expressão econômica e política, também se reconhecia ser, como ficou dito, uma das mais cristãs −ou talvez, até mesmo, a mais cristã− das nações genuinamente cristãs.
Tal se extrai dessa breve resenha da história portuguesa, é possível, de todo possível, contaminar em prol das virtudes as condutas individuais e sociais, de maneira que a virtude da política seja a política das virtudes, ou, em outras palavras, que a prática da política seja a prática das virtudes.