Des. Ricardo Dip
Para encerrar a breve referência que, neste capítulo relativo às fontes do direito notarial e registral, vimos fazendo sobre a constituição política, parece oportuna uma concisa incursão no plano da filosofia constitucional, como elemento relevante para uma dada peculiarização do notariado e dos registros públicos.
Essa filosofia constitucional é uma parte quer da filosofia política, quer da filosofia jurídica. A principal pergunta que se oferece ao filósofo constitucional está em saber se a sociedade é feita para o estado, ou se, ao revés, o estado é que está feito e deve fazer-se para a sociedade. Como seja a resposta a essa indagação, assim será, de maneira coerente, a exigência ou não de o estado observar a natureza histórica das notas e dos registros. Se se entender, com efeito, que a sociedade está a serviço do estado, a atividade notarial e registral deverá moldar-se pelos interesses estatais; se, diversamente, entender-se que o estado deve servir a sociedade, as notas e os registros −que são primeiramente instituições sociais, gestadas na sociedade civil− terão conservadas suas características tradicionais.
Segundo a convicção de que o estado haja de estimular e garantir uma democracia orgânica −tal que respeite e resguarde a constituição real dos direitos naturais da família, dos direitos de outros corpos intermédios (de que são exemplo as corporações profissionais) e dos dos municípios e regiões−, podemos falar, com Frédéric Le Play, de uma constituição essencial, que seja a base das constituições constructas em cada nação.
Quais os princípios dessa constitution essentielle apontada por Le Play? Diz nosso autor que «sete elementos são indispensáveis para constituir solidamente, no seio de uma sociedade, a felicidade fundada sobre a estabilidade e a paz» (in La constitution essentielle de l’humanité, ed. Alfred Mame et Fils, Paris, 1881, cap. III, § 2º, p. 83).
O primeiro desses princípios, segundo Le Play, é o Decálogo, «que todos os povos prósperos puseram à frente de suas instituições» (III-§ 3º). Prossegue o autor: «A tradição oral dos dez mandamentos foi a lei suprema das raças simples e primitivas», e remata esse referido § 3º: «Esse código, apoiado sobre a tradição, apresenta-se então como um meio seguro de convergir em um grupo reformista muitos homens, hoje divididos por erros inspirados pelo espírito de novidade».
O segundo princípio elencado por Le Play é o da autoridade paterna (III-§ 4º), que é «imposta pela mesma natureza ao homem».
Terceiro princípio: a religião. Diz Le Play: «A religião, como a autoridade paternal e os outros princípios, está implicitamente contida no Decálogo» (III - § 5°). E prossegue: «(…) Deus não é somente o criador do universo e da humanidade; ele concedeu a esta, por uma exceção única, uma parte de sua grandeza e de seu poder. Ele dispensou o homem de obedecer cegamente ao instinto que liga os animais submissos, no interesse de sua conservação, às forças da natureza». Aos homens, Deus «concedeu o livre arbítrio que permite a sua criatura privilegiada dominar essas forças [da natureza] em certa medida, e de estabelecer seu domínio sobre quase toda a terra». E embora Le Play assinale a possibilidade de abuso no exercício dessa liberdade humana, diz que uma segunda concessão divina completa a primeira, sem destruir a liberdade «Deus revelou ao primeiro homem, em seu Decálogo, a lei moral que fornece às famílias e às sociedades o freio que elas não encontram em sua própria natureza».
Quarto princípio da constituição essencial indicada por Le Play: a soberania, para «prevenir as violências, julgar os conflitos de interesses e punir os atentados contra a paz pública» (III=§ 6º).
Os últimos três princípios dessa constituição essencial da humanidade, segundo Frédéric Le Play, são os modos da propriedade: comunal, familiar e patronal (III-§ 7°).
Essa constituição essencial complementa-se pelas peculiaridades das tradições nacionais, ensejando, em palavras de Marcel de la Bigne de Villeneuve, uma constituição social (Principes de sociologie politique et de statologie générale, ed. Sirey, Paris, 1957, passim), que há de ser o molde fundamental das constituições escritas, as constituições constructas, sob pena de estabelecer-se um divórcio entre o país real e o país legal.