Fontes do direito notarial e registral (sétima parte)

                                               Des. Ricardo Dip

É próprio das constituições políticas a repartição das competências entre os poderes −ou como, de maneira mais rigorosa, pode dizer-se: as funções− da potestade política (assim, ordinariamente, as funções executiva, legislativa e judicial).

         Admite-se um dado hibridismo competencial nas funções do poder político, de modo que, naquilo que nos interessa para o tema de que aqui cuidamos −o das fontes do direito notarial e registral−, caiba considerar a questão da competência normativo-judiciária para as notas e os registros.

         Cumpre distinguir, inicialmente, a jurisprudência pretoriana e as normas judicial-administrativas. Aquela, sobre a qual mais adiante versaremos, resulta da solução de casos concretos e impõe-se só por sua autoridade, ressalvada a hipótese de previsão legal de sentenças normativas. Já, diversamente, as normas da administração judicial das notas e dos registros públicos são preceitos gerais e impõem-se por sua potestade.

         A Constituição brasileira de 1988 não assina expressa e particularmente ao judiciário competência legislativa para a ordem própria das notas e dos registros, nem essa competência deriva da só atribuição de funções de fiscalização e controle (art. 236). Todavia, há dois pontos a considerar: primeiro, o de que, ainda não imune a alguma possível controvérsia acerca de sua constitucionalidade, a Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, prevê −em hipótese bastante restrita− devam os tabeliães e registradores «observar as normas técnicas estabelecidas pelo juízo competente». (inc. XIV do art. 30).

         Assinale-se, pois, que se trata apenas de normas técnicas −ou seja, trata-se somente de previsões restritas à esfera do fazer −com destinação à utilidade−, não se estendendo ao âmbito do agir −dirigido ao bem moral e não ao útil; vale dizer, pois, que essas normas não podem intervir na qualificação jurídica a expedir-se, em sua ordem, pelos notários e registradores, sem prejuízo da apreciação e decisão que, posteriormente e em cada caso, possam adotar-se pelo judiciário quanto aos atos notariais e registrais.

         O segundo ponto está em que a Emenda constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004, assim dispôs no § 2º de seu art. 5º: «Até que entre em vigor o Estatuto da Magistratura, o Conselho Nacional de Justiça, mediante resolução, disciplinará seu funcionamento e definirá as atribuições do Ministro-Corregedor». Daí que possa o Conselho Nacional de Justiça, ao tratar de seu próprio funcionamento, incluir competência normativa para atender às atividades notariais e registrais.

         O problema que se põe, neste passo, está em saber se essa competência normativa conferida ao Conselho Nacional de Justiça pode exercitar-se ao ponto de revogar leis, de impor deveres além dos imperados aos destinatários da fiscalização e disciplina do Conselho, ou ainda de excepcionar a repartição competencial indicada na Constituição de 1988.

         Recentemente −e sublinhe-se que isto não recusa o benefício material aparente da nova normativa que se referirá, seja em termos de economia processual, seja no aspecto da conveniência da extrajudiciariedade quanto às situações de ausência de lide−, mas, de novo: recentemente, por meio da Resolução 571, de 26 de agosto de 2024, o Conselho Nacional de Justiça alterou sua Resolução 35, de 24 de abril de 2007, passando a admitir a possibilidade de inventário extrajudicial também nas hipóteses de herdeiros menores ou incapazes. Lê-se, a propósito, no art. 12-A dessa Resolução 35, com o texto incluído pela Resolução 571: «O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público».

         A mesma resolução atribui ao Ministério Público um dever de atuação: «A eficácia da escritura pública do inventário com interessado menor ou incapaz dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, devendo o tabelião de notas encaminhar o expediente ao respectivo representante» (§ 3º do art. 12-A). Esse é um exemplo do que, em Il diritto mitte,  Gustavo Zagrebelsky designa de «legislatività dell’organizzazione» (ed. Einaudi, 9.ed., Turim, 2010, p. 40), em que a predeterminação legal da atividade administrativa de um poder se supera pelas normas elaboradas por esse mesmo poder.

         A resolução parece ainda conflitar com o disposto no art. 610 do Código de processo civil: «Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial».

         Ora, assim, uma questão formal, portanto, está em apreciar e decidir se a competência assinada nos termos do § 2º do art. 5º da Emenda constitucional 45, de 2004, abrange

•        o poder revocatório de preceitos legais,

•        a possibilidade de imperar condutas a quem não esteja subordinado aos poderes de fiscalização e disciplina do Conselho Nacional de Justiça, e

•        a superação das regras de repartição competencial previstas na Constituição brasileira (p.ex., formando leis para as notas e os registros).

         De toda a sorte, a norma do § 2º do art. 5º da referida Emenda 45 diz respeito apenas ao Conselho Nacional de Justiça, não se estendendo às corregedorias gerais de justiça dos estados e do Distrito federal, nem às corregedorias permanentes.