Fontes do direito notarial e registral (quinta parte)

                                               Des. Ricardo Dip

         Continuando a tratar, com a brevidade exigível, da constituição política tomada como fonte do direito notarial e registral, reitere-se a necessidade de distinguir, de um lado, a realidade mesma dessa constituição −e, com ela, a importância irrecusável do direito posto para a ordenação da vida comunitária e a consecução do bem comum−, e, de outro lado, um dado culto constitucional (na expressão de Marcel de la Bigne de Villeneuve, «une religion qui touche à la superstition»).

         Há mais de dois milênios, Aristóteles assentou que o homem é um animal político, é dizer, um animal que, com uma característica natural e necessária, deve conviver com os de sua espécie. Um animal político e, além disso, social, porque convive em diferentes grupos sociais intermédios entre os indivíduos e o estado.

         Sendo assim −sendo necessariamente assim−, os homens existem individualmente e coexistem socialmente, numa convivência comunitária que lhes dá fisionomia. As sociedades possuem suas organizações, desde a família −cellula mater societatis−, passando por inúmeros outros grupos sociais, até chegar ao estado. De par com a ideia e realidade de uma constituição política −em regra, votada, em nossos tempos, por uma assembleia representativa dos cidadãos− há também a realidade e a ideia de uma constituição social, votada pela história, consagrando os princípios tradicionais de cada nação.

         Para quem julgue deva o estado servir à sociedade civil −e não, em vez disso, que a sociedade é quem deva servir ao estado−, repita-se, para quem considere a primazia da sociedade, a constituição política há de observar a constituição histórica da sociedade, porque a história −o patrimônio da tradição− forma e revela a natureza singular de cada sociedade.

         Tratando-se aqui do tema da fonte constitucional das notas e dos registros públicos no Brasil, o que se espera de uma constituição política é o respeito da tradição, é a recolha fiel do patrimônio construído pelas gerações precedentes.

         Não há nessa observância reverente da tradição notarial e registral nenhum passadismo, reacionarismo ou conservadorismo.

         Com o cultivo da tradição, não há passadismo, porque, como disse Álvaro D’Ors, os vivos (e não os mortos) são os protagonistas da tradição, porque são os vivos que carregam o legado a transmitir para as novas gerações.

         Com o cultivo da tradição, não há reacionarismo, porque a tradição é progressista, é dinâmica: não há progresso sem tradição, porque sem esta, sempre se teria de recorrer à tabula rasa; e tampouco, assim o disse muito bem Francisco Elías de Tejada, não há tradição sem progresso, pois, do contrário, a tradição seria «muerta, arqueológica, petrificada».

         Com o cultivo da tradição, não há conservadorismo, porque a ideia de conservar implica uma paralisia oposta do dinamismo da tradição. Que se pensa conservar? O mais recente estágio da revolução desconstrutiva?

         Ao revés, com o cultivo da tradição, quer-se manter a substância histórica −em nosso tema, a substância das notas e dos registros públicos−, que é a de sua configuração latina e românica, observando-se os pilares de sua formação várias vezes secular, emblematicamente resumíveis no reconhecimento da independência jurídica dos notários e dos registradores, constituídos muito mais pela própria sociedade do que pelo estado.