Por Ricardo Dip
1. O grande romanista que foi Álvaro D’Ors publicou, em 1996 (Verbo de Madri, ns. 345-6), umas excelentes Claves conceptuales, em cuja abertura observou que uma definição não é necessariamente definitiva, “sino solo algo definitorio”, algo, muitas vezes, que mais se dirige a indicar o que é alheio ao definido (pôr limites ou fins ao objeto) do que a excluir, à partida, uma eventual mudança e melhoria da definição. Quis ele pôr à mostra, com louvável humildade –era um homem de reconhecida sabedoria–, o caráter potencialmente provisório de suas claves conceituais.
Destituído eu, embora, dos atributos de sapiência que ornaram a vida deste notável pensador espanhol, quero valer-me do exemplo de sua modéstia intelectual, e isto com perdão, porque o que pareço aqui fazer, num atrevimento imprudente, é como que vicarium docere Patrem Nostrum; ou seja, é como se tivesse eu a pretensão indiscreta e descabida de “ensinar notas para notários”. Não, isto não: o que almejo é ir apresentando aos estudiosos do direito notarial, entre eles aos notários em primeiríssimo lugar, algumas definições provisórias, vale dizer, alguns limites, alguns fins que, fruto de meu pós-meridiano, das palavras notariais à ligeira me apareçam. Serão, enfim, pequenas notas sobre as notas –parvæ notæ de notis–, e sua provisoriedade fale por mim como testemunho da evidente singeleza de minhas meditações. Minha esperança é de que as completem os de melhor arte e ciência.
Antes de começar, todavia, meu começo deve ser o agradecimento ao Colégio Notarial do Paraná pela aventura de divulgar minhas claves notariais.
2. NOTÁRIO LATINO ou ROMÂNICO: um jurista que, exercendo arte liberal –função privada–, acede a fins públicos, tal que cumprir essa função pública se faça o modo de exercício daquela função privada, e a suas atividades de respondere e de cavere agreguem-se tanto a arte de documentar, quanto o testemunho de fé pública que nele foi delegado pela potestade política. Essa definição recolhe um patrimônio comum da doutrina, mas é, sobretudo, tributária das meditações de Vallet de Goytisolo e de Rodríguez Adrados.
Não se pode afirmar com segurança se os ancestrais do notário latino tenham sido, primeiro, documentadores e, depois, jurisprudentes. Tem-se a tentação de dizer categoricamente que foi assim, mas o fato é que, quando se pensa nos povos pré-alfabetos, é exatamente a falta de documentos o que inibe a deposição desta dúvida. Nada estorva, contudo, admitir-se uma possibilidade maior. embora não provada, que tenha sido deste modo no direito embrionário: primeiro, o documentador; depois, o jurisprudente. Não que venha o direito após o documento, mas, sim, que vem o documento antes do profissional do direito. Quando gente pré-alfabeto começa a romper seu isolamento vicinal, surge a necessidade da escrita (o direito, rudimentar, no entanto e certamente, preexiste à escrita), e, com ela, a escrita, vem o que Barnes e Becker qualificaram de “quase necessidade” dos escribas. Não ainda dos juristas, necessidade dos escribas, ou seja, necessidade dos que soubessem o alfabeto emergente. Antes de vir, pois, o jurisprudente, veio o documento, e já estava antes o direito em embrião.
Mas isto da primazia do documento humano –é de Núñez Lagos a famosa sentença “al principio era el documento”– não exclui a prioridade cronológica de sua causa eficiente. As coisas artificiais –i.e., as coisas produzidas pela indústria do homem e não pela natureza– são efeito de uma concausa humana atuando sobre entes naturais. Ainda que não houvera o jurisprudente, e antes, pois, de havê-lo, superada a fase pré-alfabeto havia já o documentador, que era de algum modo um notário avant la lettre, porque, criado o alfabeto, as pessoas, disse-o bem Fernández Casado, têm a necessidade de procurar outrem “por saber escribir”.
Fonte: CNB-PR
Foto: Studio Mary Soares