Des. Ricardo Dip
O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 1)
Em discurso proferido no dia 5 de outubro de 1958, por ocasião do I Congresso da União Internacional do Notariado Latino, o Papa Pio XII -do qual deve dizer-se, não por fórmula de estilo, mas com inteira razão, ser um Pontífice de pranteada memória-, eu dizia, o Papa Pacelli destacou que, ao lado da competência técnica reconhecida, deva o notário satisfazer a condição de uma integridade moral indiscutível (no original francês: “intégrité morale indiscutable”).
E mais à frente, não sem antes realçar a importância de observar a legalidade, prosseguiu Pio XII, dizendo que o notário, conseiller des parties et le dépositaire de leurs secrets (traduziríamos nós: conselheiro dos clientes e depositário de seus segredos), “em algumas ocasiões, ultrapassará francamente a letra da lei, para melhor conservar sua intenção”, porque, remata o Pontífice, “as leis mesmas não são um absoluto; cedem passo à consciência reta e bem formada, e precisamente reconhece-se o verdadeiro homem de leis (véritable homme de loi), seja magistrado, advogado ou notário, na competência aportada à interpretação dos textos em vista do bem superior dos indivíduos e da comunidade”.
O notário tem, pois, diante de seus olhos, a difícil tarefa de observar a lei para realizar o que é justo -o quod iustum est-, de maneira que possa cumprir-se “o bem superior dos indivíduos e da comunidade” (bien supérieur des individus et de la communauté). Esse bem superior, que é tanto o bem de cada indivíduo, quanto o bem da própria comunidade inteira, -bem que dá critérios para a compreensão dos significados normativos- são de variada natureza: uns são materiais ou econômicos; outros, artísticos; outros ainda, morais; intelectuais; espirituais. A ordem destas coisas entre si constitui o bem do universo (“ordo enim rerum ad invidem est bonum universi” -S.th., I, q. 61, ad3um). Quando essas coisas estão bem ordenadas, isto é, quando há entre elas a observação de uma reta hierarquia, respondem elas com êxito à razão e à bondade moral; desordenadas, porém, testemunham os grandes vícios, os vícios capitais, que pervertem, quando não mesmo destroem as civilizações (prova-o a história de tantos povos).
A observância da legalidade, portanto, destina-se à consecução de um bem superior que congrega bens de diversa natureza e que demanda considerar sua hierarquia e sua dimensão ético-pública (porque, em definitivo, são as normas morais -ou seja, as que discriminam, segundo a reta razão, o bem e o mal éticos- os pilares de toda norma jurídica; já o dissera, no Digesto, o jurisconsulto Paulo: “non omne quo licet honestum est” -nem tudo o que é legal é honesto-, e são sensatas estas palavras de Francesco Viola, em sua rilettura aggiornata da relação entre direito e moral: “Todo o direito posto pelo homem baseia-se na validade das normas morais que precedem o direito”).
É, pois, à luz da moral -mais exatamente do que se designa moral pública ou ética pública (assim a refere o grande notário bonairense Bernardino Montejano)- que, na compreensão, interpretação e aplicação das leis, na sua vida inteira de consagração ao direito, devem conduzir-se todos os juristas, incluídos de maneira específica e graduada aqueles a quem exatamente incumbe contribuir para a paz jurídica: os notários.
Ao menos análoga, contudo, é a noção de moralidade pública (para não dizer que seja equívoca), e certamente, ainda em seu sentido possível de moralidade comunitária, não é conceito de fácil delimitação, mormente, assim o veremos, no domínio dos estados laicos.
Reduzem-na alguns a um conjunto de normas imprecisas, elásticas, de textura aberta, cláusulas gerais, aos usos e costumes (o que as equivaleria ao só fenômeno, valioso ou sem valia, de uma dada moral social dominante), ou aos princípios gerais de justiça, imparcialidade e boa-fé, quando não a pareceres de conselhos consultivos. Se não é caso de, simplesmente, repugnar em absoluto o valor de algumas destas ideias, pouco ou nada subsidiam a tarefa de definir (pôr limites precisos) a ética pública.
Outros, de maneira mais demarcada -ainda que não isentos de alguma indevida redução compreensiva ou de imprecisão conceitual-, designam moralidade pública (i) a ética dos atos no espaço público; ou (ii) a moral profissional dos servidores públicos; ou (iii) a moral administrativa (é dizer, a prática da boa administração -Welter-, a disciplina administrativa interna -Lacharrière-, o “direito natural da instituição” -Maurice Hauriou); ou, por fim, (iv) a moral da comunidade (moral comunitária), em seus princípios e fundamentos normativos.
Prosseguiremos.
Fonte: CNB-PR
Foto: Studio Mary Soares