(da série Registros sobre Registros n. 424)
Des. Ricardo Dip
1.235. Prevê o item 27 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, o averbamento da extinção de legitimação de posse.
É averbável essa extinção no ofício imobiliário porque se remete a um anterior registro da legitimação possessória.
Já tivemos, há algum tempo, ocasião para tratar do instituto dessa legitimação de posse. Ponto de relevo foi, então, observar, com o que disseram Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari: «o instituto da legitimação de posse é tipicamente brasileiro, estando intimamente relacionado à forma pela qual se deu a ocupação do território nacional» (Tratado notarial e registral, vol. 5, tomo I, item 3.1.2.1.1).
A aludida forma de ocupação do território brasileiro pelo conquistador português foi a do regime de sesmarias, com a imposição aos sesmeiros dos deveres de colonizar a terra ocupada, demarcando-a e nela fazendo moradia habitual.
Havíamos antecipado, entretanto, que esse regime de sesmarias descendera da prática das presúrias, a cujo respeito parece-nos importante reiterar algumas tantas considerações.
Depois da predominância da tribo celtibera no território que viria a ser o de Portugal, coube aos romanos ocupar a Península ibérica, ao largo de cerca de 600 anos, entre 218 a.C. e 410. Sucederam-nos povos germânicos, os suevos, de 410 a 585, e os visigodos, de 585 a 711. Houve, então, a partir de 711, a invasão muçulmana (711 foi a data da Batalha de Guadalete, em que os islâmicos, liderados por Tárik, venceram os visigodos que estavam sob o comando de seu último rei, Dom Rodrigo; Guadalete é o nome de um rio do sul da Espanha, na Adaluzia, perto do que é hoje a cidade de Cádiz). Os muçulmanos já haviam, em 714, dominado quase toda a Península ibérica, salvo uma porção do norte, os Montes Cantábricos, e expandiram sua invasão até a Sicília, a Sardenha, a Grécia e Jerusalém; mas, em 732, interrompeu-se seu avanço, vencidos que foram pelas tropas francesas de Carlos Martel na Batalha de Poitiers (também conhecida como Batalha de Tours, nome da cidade em cuja cercania se postara o exército francês); Martel era, juridicamente, magister palatii, maior palatii, maior domus regiæ, maire du palais, uma espécie, enfim, de primeiro ministro do regnum francorum, mas, de fato, exercia então poderes de monarca, que se estendeu após a morte do rei merovíngio Thierry IV, em 737, pois Carlos Martel não sagrou um novo rei, preservando o governo do Reino de França).
Com a derrota em Poitiers, os muçulmanos também retrocederam do norte da Península ibérica, mercê da heroica resistência de Pelágio e de outros cristãos, a partir da Batalha de Covadonga, que aconteceu no ano 718. Prosseguiu a denominada Reconquista cristã com a recuperação da Galiza e da região entre os rios Minho e Douro (a chamada região interamnense, onde se deu a consolidação da língua portuguesa exemplar).
A Reconquista foi uma recristianização religiosa e cultural que, no aspecto material, traduziu-se como a recuperação dos territórios que haviam sido dominados pelos árabes. E é a essa recuperação territorial que se deu o nome de presúria.
Pode dizer-se que a presúria é tanto a ação de recobro das terras hispânicas espoliadas, quanto o objeto dessa ação, ou seja, as próprias terras. Eram, pois, nesse segundo significado, as áreas geográficas retomadas dos árabes, e que foram, assim, incorporadas à potestade vitoriosa, que era, até o ano de 910, a do Reino das Astúrias. A partir de 910, dividiu-se esse Reino asturiano entre os três filhos de Dom Alfonso III, "O Magno", e a capital das Astúrias transferiu -se para León, em mãos do primogênito de Alfonso III, de nome Garcia, a cuja morte, em 914, sucedeu seu irmão Ordoño II, que acrescentou ao Reino de León a Galiza e parte de terras entre o Minho e o Douro, porção esta última que lhe coubera na divisão hereditária do antigo Reino asturiano.
Antes disso, porém, em 868, o rei Dom Alfonso III, das Astúrias, já criara dois condados −o de Castela e o Portucalense−, que, sendo presúrias (isto é, terras retomadas dos islâmicos), foram atribuídas, com alguma autonomia, à gestão de nobres. Assim é que a região do que hoje é o norte de Portugal −ou seja, a área entre os rios Minho e Douro− foi entregue, a título hereditário, a Vímara Peres (845-873), um nobre nascido na região de Guimarães. O território desse condado, que foi o primeiro Condado Portucalense (assim o ensina Diogo Freitas do Amaral, em Da Lusitânia a Portugal (ed. Bertrand, Lisboa, 2017, p. 56 sqq.), expandiu-se com a presúria de Coimbra, de modo que passou a estender-se do Minho ao Mondego.
Esse primeiro Condado Portucalense perdurou até 1071, quando passou a administrar-se diretamente por Alfonso VI, Rei de León, nessa situação permanecendo até 1094, quando Dom Alfonso VI atribuiu ao Conde Raimundo de Borgonha −que era seu genro, casado com sua filha Dona Urraca− tanto a Galiza, quanto a área do antigo Condado Portucalense (por isto, inicia-se em 1094 o segundo Condado Portucalense).
Todavia, o Conde Raimundo de Borgonha sofreu insucessos militares nas cercanias de Lisboa, e, por essa razão, Dom Alfonso VI destituiu-o da governança do Condado Portucalense, dando esse território em dote ao Conde Henrique de Borgonha, outro dos genros do Rei de León (a esta altura, Dom Alfonso VI já era também Rei de Castela); o Conde Henrique de Borgonha era casado com Dona Teresa de León, filha ilegítima do rei e de Dona Ximena Moniz. Inaugurou-se, assim, o terceiro Condado Portucalense.
Aqui deve, sobretudo, considerar-se a ampla e discricionária disponibilidade das áreas que os reinos cristãos −e os nobres− reconquistavam dos muçulmanos, porque isso leva a reconhecer que da reconquista emanava um título dominial. Tenha-se em conta que Dona Teresa de León doou imóveis, em 1122 e 1128, para o estabelecimento de duas das quatro ordens militares que se instalaram no terceiro Condado Portucalense (as Ordens dos hospitalários e dos templários); no século XIV, o Rei Dom João I doou ao Condestável Nun'Álvares Pereira tantas terras resultantes de presúrias −p.ex., os três condados que havia em Portugal: de Arraiolos, de Barcelos e de Ourém−, que Dom Nuno se tornou o homem mais rico do Reino de Portugal; no século XV, durante a regência de Dom Pedro (morto o Rei Dom Duarte, seu sucessor Dom Afonso V era então uma criança com seis anos de idade, de que seguiu a regência do Reino de Portugal, depois de breve período em que a exerceu Dona Leonor de Aragão, por Dom Pedro, tio de Dom Afonso V), mas, repete-se: com o Regente Dom Pedro estabeleceu-se o Ducado de Bragança −até a essa altura, havia dois ducados em Portugal: o de Coimbra, concedido por Dom João I a seu filho Dom Pedro, e o de Viseu, também conferido pelo mesmo Rei Dom João I a outro de seus filhos, Dom Henrique, um dos seis integrantes da ínclita geração a que se referiram célebres versos de Luís de Camões: "pera defensão dos Lusitanos,/Deixou, quem o levou, quem governasse/ E aumentasse a terra mais que dantes:/ Ínclita geração, altos Infantes" (in Os Lusíadas, IV, 50); à frente, Dom Afonso V criou o Ducado de Beja, concedendo-o a seu irmão, o Infante Dom Fernando; o Ducado de Bragança conferiu-se a um meio-irmão do Regente Dom Pedro, Afonso Pires, filho bastardo do Mestre de Aviz e de Dona Inês Pires (a esse ducado concorreria a grande fortuna particular de Portugal, uma vez que Afonso Pires se casara com Dona Beatriz Pereira Alvim, filha do Condestável Nun'Álvares Pereira e de Dona Leonor Alvim).
Abramos aqui um parêntese, para avisar do risco do anacronismo. Recentemente, em trabalho com o título «Dificuldades para o estudo da Idade Média»,policopiado pelo Centro Universitário Católico Ítalo-Brasileiro, o Professor Armando Alexandre dos Santos reportou-se a uma celebrada afirmação de Lucien Febvre, referida, com frequência, nos meios acadêmicos brasileiros, num modo simplificado: «o anacronismo é o pecado mortal do historiador». Muito raramente a citação é feita de modo completo e correto, assim a reproduziu o muito autorizado Armando Alexandre dos Santos, remetendo-se a uma obra publicada por Febvre em 1942 sobre François Rabelais, em que, ao introduzir a análise da religiosidade desse literato no contexto do panorama do século XVI, Lucien Febvre indicou a grande dificuldade para esse tema ser adequadamente compreendido: «Le problème est d'arrêter avec exactitude la série des précautions à prendre, des prescriptions à observer pour éviter le péché des péchés, le péché entre tous irrémissible: l'anachronisme» −O problema que se trata de resolver é estabelecer com exatidão a série de cuidados que devem ser tomados para ser evitado o pecado dos pecados, o mais imperdoável dos pecados: o anacronismo (Le problème de l'incroyance au XVIe siècle. La religion de Rabelais, Paris: Albin Michel, 1968, p. 15).
Por que tocamos nesse tópico do anacronismo? Porque até depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), entendia-se, de maneira prevalecente, constituir um dever das grandes potências mundiais ensinar e instituir a civilização nos povos menos favorecidos. Por mais que caiba diferenciar os modos com que essas várias potências se conduziram na tarefa (ou missão, segundo o caso) que havia de ser civilizacional −e não de mera colonização econômica, seria anacrônico, por primeiro, impugnar sem mais uma praxis política adotada segundo o comum entendimento da época, de maneira que retrocedêssemos o critério que hoje se afirma com muita frequência, para distorcer a tarefa civilizadora, reduzida à ideia de submetimento político e econômico. Se de fato, e houve, muitas injustas atitudes no exercício dessa tarefa, isso não pode imputar-se, entretanto, à essência da atuação dos conquistadores hispânicos, que, revestidos de um sentido missional −consequente, em muito, da luta de oito séculos contra os invasores da Península ibérica−, trataram sempre, como bem o sintetizou Luís de Camões, de unir a expansão imperial à conversão religiosa: «E também as memórias gloriosas/Daqueles Reis, que foram dilatando/ A Fé, o Império, e as terras viciosas» (Os Lusíadas, I, 2).
Para fechar o parêntese, vem a calhar citarmos o que disse, a propósito, um grande intelectual português, José Saramago, que, como é sabido, foi figura importante do partido comunista lusitano. Criticou Saramago os que buscam afastar as consequências de um fato histórico, tal o da chegada dos portugueses e espanhóis ao território americano, salientando «que uma data tão importante na história da humanidade −a da descoberta da América− possa conduzir a reivindicações, não direi ridículas, mas impossíveis de serem levadas a sério» (citado por Sílvio Elia, em «Portugal nos descobrimentos”, reproduzido na obra coletiva Na ponta da língua, Rio de Janeiro, Lucerna, 2000, vol. 2, p. 25).
Prosseguiremos.