(da série Registros sobre Registros, n. 269)
Des. Ricardo Dip
- O item 24 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, diz respeito ao registro stricto sensu “das sentenças que nos inventários, arrolamentos e partilhas, adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança”; vale dizer que concerne ao direito de crédito de terceiros, deixando-se os temas da entrega de legado e da divisão (e adjudicação) dos bens da herança aos cônjuges meeiros e herdeiros para tratar-se no item 25 do mesmo inciso I do art. 167 da vigente Lei de registros públicos.
Essa referida previsão do item 24 entronca-se no que já se continha no Regulamento registral de 1939 (Decreto 4.857), como se lia em seu art. 178 (alínea b, V), indicando-se a transcrição “das sentenças que, nos inventários e partilhas, adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança”.
É da norma substantiva que, até a partilha, “a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido” (art. 1.997 do Código civil brasileiro de 2002), e, depois dela, “só respondam os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube”, suposto sempre que o passivo da herança não lhe supere o valor: “O herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demostrando o valor dos bens herdados” (art. 1.792).
Considere-se, de logo, que, em princípio, a satisfação do passivo, nos inventários e arrolamentos, resulta do produto da alienação de bens separados exatamente para o pagamento dos credores. Essa separação de bens, prevista, por agora, nas regras dos §§ 2º e 3º do art. 642 do Código de processo civil brasileiro de 2015, e referida também no § 1º do art. 1.997 do Código civil de 2002, era já indicada no art. 1.017 (§§ 3º e 4º) do Código processual civil de 1973, e, ainda antes, no art. 495 do Código de 1939, cujo dispositivo assim comentou Carvalho Santos: “[Para satisfazer o passivo da massa hereditária] A lei concede (…) preferência ao dinheiro. Na falta deste, prefere os móveis e semoventes, para o pagamento do passivo” (Código de processo civil interpretado, 1947, VI, p. 149). No mesmo sentido, Serpa Lopes: “Em princípio, o pagamento aos credores, nos inventários, é feito com o produto da venda dos bens separados para esse efeito…” (Tratado dos registos públicos, item 594). Repisando este caminho, o Código de processo civil em vigor, prevendo que, com precedência à partilha, possam os credores do espólio “requerer ao juízo do inventário o pagamento das dívidas vencidas e exigíveis” (caput do art. 642), mediante pleito conexo ao processo de inventário (§ 1º do mesmo art. 642), assim dispõe: “Concordando as partes com o pedido, o juiz, ao declarar habilitado o credor, mandará que se faça a separação de dinheiro ou, em sua falta, de bens suficientes para o pagamento” (§ 2º).
A previsão do antigo art. 495 do Código de 1939, que assinava preferência ao dinheiro, aos móveis e aos semoventes para a satisfação dos créditos contra o espólio, não estorvava, entretanto, que, mediando acordo de todos os interessados, deixasse “de ser observada essa preferência, separando-se, desde logo, imóveis” (Carvalho Santos), cuja alienação havia de fazer-se em hasta pública: “O direito do credor é meramente pessoal e justamente por isso manda o Código sejam vendidos em hasta pública os bens separados para seu pagamento, que deverá ser efetuado em dinheiro” (Id.). Todavia, não faltou ao Código de 1939 a previsão adicional de que, “convindo por petição todos os interessados, o juiz adjudicará aos credores os próprios bens separados para o pagamento” (§ 3º do art. 495).
Não é diversa a orientação adotada pelo vigente Código processual de 2015, como se lê no § 4º de seu art. 642: “Se o credor requerer que, em vez de dinheiro, lhe sejam adjudicados, para o seu pagamento, os bens já reservados, o juiz deferir-lhe-á o pedido, concordando todas as partes”. Vale para a regra desse § 4º do art. 642 do Código de 2015 o entendimento de Carvalho Santos, então dirigido ao Código de 1939: “Para a possibilidade dessa adjudicação, é imprescindível ainda o consentimento das mulheres dos interessados casados, desde que os bens separados para o pagamento do credor sejam imóveis”, isto porque, prosseguia o mesmo eminente jurista, “a adjudicação se equipara à venda, permuta, ou outro qualquer ato alienativo de imóveis”.
Tratando-se, pois, de um ato de translação de domínio imobiliário, era mesmo de exigir a Lei de registros públicos o correspondente acesso ao ofício predial, com efeito de publicidade constitutiva, como foi dito já pela doutrina de Serpa Lopes: “A transcrição [da adjudicação] no Registo Imobiliário impõe-se com a mesma eficácia da transcrição prescrita para a compra e venda e demais atos idênticos. Atua, portanto, constitutivamente”.
Prevê a normativa de regência que o título formal para o registro da adjudicação do imóvel em favor do credor da herança seja −ou, em rigor, integre-se− de sentença. Lê-se no § 3º do art. 642 do Código de processo civil de 2015: “Separados os bens, tantos quantos forem necessários para o pagamento dos credores habilitados, o juiz mandará aliená-los, observando-se as disposições deste Código relativas à expropriação”; para logo e de caminho, assinale-se pender controvérsia pretoriana acerca da natureza decisão judicial que, ao determinar a alienação dos bens, julgue habilitado o crédito objeto (p.ex., no STJ, no REsp 1.107.400 julgou-se tratar-se de decisão interlocutória −recorrível por meio de agravo, pois−, ao passo em que no REsp 1.113.447 se assentou: “Os recorridos cometeram um erro grosseiro ao interpor recurso de agravo contra a decisão da habilitação de crédito porque não há dúvidas de que se trata de uma sentença e, portanto, sujeita à apelação” -Min. Nancy Andrighi; no mesmo sentido deste julgado, Marcus Andrade, na obra coletiva dirigida por José Manoel de Arruda Alvim, Alexandre Laizo Clápis e Everaldo Augusto Cambler, Lei de registros públicos comentada, 2014, p. 687-688).
Mas, voltando ao tema do título exigível para o registro da adjudicação de imóvel ao credor da herança, prescreve o Código de processo civil, tal já ficou referido, que se observem as disposições do mesmo Código relativas à expropriação. A adjudicação é um dos modos expropriatórios alistados no Código de 2015 (cf. inc. I do art. 825), e dela trata, entre outros dispositivos, o art. 877 desse mesmo Código, prevendo-se, em seu caput, que, “decididas eventuais questões”, caberá ao juiz ordenar “a lavratura do auto de adjudicação”, a cuja assinatura −necessariamente pelo juiz, pelo adjudicatário e pelo escrivão− sucederá que se expeçam uma carta de adjudicação e, tratando-se de imóvel, um mandado de imissão na posse (inc. I do mesmo art. 877), contendo a referida carta “a descrição do imóvel, com remissão à sua matrícula e aos seus registros, a cópia do auto de adjudicação e a prova de quitação do imposto de transmissão” (§ 2º do art. 877).
Deve entender-se que essa carta de adjudicação corresponde, essencialmente, à carta de sentença arrolada no inciso IV do art. 221 da Lei 6.015, dispositivo este que versa os títulos admitidos no registro imobiliário. Toma-se aqui o conceito de carta de sentença pela acepção de seu gênero, abrangendo, portanto, diferentes espécies de decisão, ainda as que, tal o caso, com anterioridade ao ato da expropriação, esteja de algum modo implicitada na própria execução. A jurisprudência doutrinária e a pretoriana são prolíferas em admitir que as cartas de adjudicação e de arrematação sejam títulos formais idôneos para o registro predial, ainda que a elas não se refira, de maneira explícita, o mencionado art. 221 da Lei 6.015 (cf., em acréscimo, o disposto no item 26 do inc. I do art. 167 da mesma Lei 6.015).