(da série Registros sobre Registros, n. 268)
Des. Ricardo Dip
948. Como já se indicou, prevê-se na Lei brasileira 6.015, de 1973, o registro −em sentido estrito− da demarcação. Assim há ordinariamente de ser, mas é preciso referir que a Lei 13.465/2017 (de 11-7), cuidando embora de uma espécie pontual de demarcação −a que se denominou “demarcação urbanística”−, no âmbito limitado da regularização fundiária rural e urbana, previu que essa demarcação fosse averbada no ofício imobiliário competente.
Demarcar é traçar limites, delimitar, definir, separar, assinalar, balizar, estremar, pôr marcos em algo, et reliqua. Indica-se que o vocábulo provém do latim marcum (Fontinha, Antônio Geraldo da Cunha), que, por sua vez, deriva do alemão Mark (Laudelino Freire). Ernout e Meillet registram o termo marcus, i, martelo.
Tratando-se, de maneira pontual, da demarcação de imóvel, sua finalidade é a de determinar com precisão o bem imobiliário objeto. No âmbito registral, distinguem-se, de um lado, a determinação (objetiva, subjetiva e do fato inscritível) e, de outro lado, a especialização (por igual, objetiva, subjetiva e da causa inscritível); mas, nesse sentido, a determinação tem caráter geral, e a especialização (ou especificação) completa-a. Já a demarcação visa não a essa determinação geral −a que permite saber de algum modo de qual imóvel, pessoa ou fato se cuida−, mas a uma determinação precisa. O que leva, por primeiro, a distinguir entre especialidade e demarcação é, quanto a esta, a imprecisão de limites; ou seja, em linha de princípio, atua a especialidade, mas, carecendo de precisão a linha divisória entre dois prédios, cabe a assinalação ou definição física (i.e., no solo): “O litígio entre os proprietários confinantes (…) pode decorrer de nunca ter sido traçada materialmente a linha de confrontação, ou de terem desaparecido os sinais antes utilizados para localização da divisa” (Humberto Theodoro Júnior, Terras particulares, 1981, p. 168). Assim, ao passo em que a retificação apenas indica uma linha separatória de imóveis, a demarcação trata de assinalá-la (marcá-la, defini-la com signos ou marcos) Saliente-se que a ação reivindicatória supõe que seu objeto material esteja precisamente definido, o que, alguma vez, pois, exige que essa demanda se anteceda de uma ação demarcatória.
O direito de demarcação é próprio do plexo da relação dominial, porque o dominus tem o direito de exercitar seu domínio sobre um bem certo e precisamente delimitado. Não é possível, com efeito, usar e fruir de uma coisa, de maneira exclusiva (ou seja, afastando símiles direitos de terceiros sobre essa coisa), se ela não estiver precisamente definida.
Num dado aspecto, a demarcação é uma das espécies da retificação registral no ofício imobiliário, mas, por outro aspecto, deve distinguir-se da retificação comum, tal o fez ver Afrânio de Carvalho: “… a demarcação é processo de jurisdição contenciosa, e a retificação é processo de jurisdição voluntária, quer, exercitando-se inter valentes, se apresenta como simplesmente declarativa, não atributiva de propriedade. A diferença entre um e outro está em que a demarcação admite acidentalmente a queixa de esbulho ou turbação (…), envolvendo, assim, os rumos e não apenas a extensão ou distância da linha de limites, o que o faz assumir a feição contenciosa” (“A planta do imóvel e seu aproveitamento no registro”, in VV.AA., org. Sérgio Jacomino e Ricardo Dip, Doutrinas essenciais -Direito registral, 2011, vol. 6, p. 65).
Entendia Corrêa Telles, na Doutrina das acções (§ 114), que a demanda de demarcação fosse ação de quem demonstrasse o ius in re −referiu-se ainda expressamente ao proprietário− e a correspondente anotação de Teixeira de Freitas (nota 551 ao § 110) esclarece que o suposto da demarcatória é o estado de confusão entre proprietários confrontantes, o que resulta num “estado semelhante ao da −comunhão−“, convindo, para a tranquilidade particular e a tranquilidade pública, que se liquidem “os limites topográficos”. Com o Decreto 720/1890 (de 5-9), que versava a divisão e a demarcação das terras do domínio particular, indicou-se a legitimidade ativa ad causam, nas demarcatórias, ao autor que demonstrasse seu ius in re (art. 66), e o Código civil brasileiro de 1916, ao menos por sua letra, parecia acomodar-se ao entendimento restritivo de que a demarcação competia aos domini: “Todo proprietário (lê-se em seu art. 569) pode obrigar o seu confinante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, etc.”.
Diversamente, contudo, forte foi logo a orientação doutrinária que estendia −p.ex., ao usuário, ao usufrutuário, ao enfiteuta−, a legitimidade ativa para ajuizar a demarcatória (cf., p.ex., Clóvis Beviláqua, Carvalho Santos, Tito Fulgêncio, Costa Carvalho). A despeito desse entendimento, o Código de processo civil de 1939 previa caber a “demarcação, ao proprietário ou condômino de um prédio contra os possuidores do prédio confinante, para a fixação de rumos novas ou aviventação dos existentes”, e o de 1973 seguiu na mesma linha: a demarcatória é ação do “proprietário para obrigar o seu confinante a estremar os respectivos prédios, fixando-se novos limites entre eles ou aviventando-se os já apagados” (inc. I do art. 946). Por igual, o Código de processo civil de 2015, no inciso I de seu art. 569.
Na sequência de sólida tradição, à demanda demarcatória, tal a prevê o Código processual brasileiro de 2015, estremando os imóveis confinantes, cabe fixar novos limites entre eles ou aviventar os limites já apagados. Seu processo possui duas etapas; na primeira, que é propriamente sua fase contenciosa, trata-se de, admitido o ius in re do autor, apreciar e decidir acerca das incertezas sobre as linhas de contornos dos imóveis confinantes, assinando-se, ao fim e com precisão, as divisas correspondentes (art. 581: “A sentença que julgar procedente o pedido determinará o traçado da linha demarcanda”). Com o trânsito em julgado dessa sentença (art. 582), inicia-se a segunda etapa do processo, passando um perito a efetuar a demarcação (que é sinalização física) e, pois, a colocar “os marcos necessários”. Ao termo dessa atividade pericial, ouvidas as partes e efetuadas eventuais correções, o juiz determinará que se expeça “o auto de demarcação em que os limites demarcandos serão minuciosamente descritos de acordo com o memorial e a planta” (par. único do art. 586), planta e memorial que devem ter sido elaboradas pelo perito (arts. 582, par. único, e 583). Por derradeiro, assinado o auto, “será proferida a sentença homologatória da demarcação” (art. 587).
Ao registro imobiliário deve acorrer uma carta de sentença extraída do processo demarcatório e composta do auto de demarcação, da certidão de trânsito em julgado da sentença homologatória e, ao menos com o caráter de convenientes, da planta e do memorial descritivo.
Averbe-se que a lei pode propiciar a possibilidade da demarcação administrativa, assim, p.ex., a das terras indígenas (art. 231 da Constituição federal de 1988), demarcação que é objeto de homologação por meio de decreto, como se lê no art. 5º do Decreto 1.775/1996 (de 8-1), prevendo-se seu registro no ofício imobiliário (art. 6º). Também se admite o processo administrativo de demarcação dos terrenos de marinha e de terras interiores da União (Decreto-lei 9.760, de 5-9-1946). Por fim, cabe aqui também aludir à demarcação urbanística adotada na Lei 13.465/2017, lendo-se em seu art. 22: “Decorrido o prazo sem impugnação ou caso superada a oposição ao procedimento, o auto de demarcação urbanística será encaminhado ao registro de imóveis e averbado nas matrículas por ele alcançadas” (note-se: prevê-se o averbamento da demarcação, suposta, por óbvio, a existência já de matrícula do imóvel correspondente).