Registro da alienação fiduciária coisa imóvel (parte 4 -conclusão e excurso)

(da série Registros sobre Registros, n. 357)

Des. Ricardo Dip

1.110. Incursionando a breve trecho na nova Lei 14.711, de outubro de 2023, dirigindo nosso foco para o campo da alienação fiduciária de imóvel em garantia −objeto do capítulo que estamos a concluir−, parece convir uma rápida referência ao tema geral «mudança das leis».

Duas décadas e pouco bastaram para afastar a euforia idealista que via no Código civil brasileiro de 2002 a derradeira palavra em matéria de atualização normativa para esta nossa antiga Terra de Santa Cruz. Agora mesmo tem-se notícia de uma ansiedade reformista que, segundo alguns de seus empenhados artífices, produzirá, enfim, a antiga «derradeira palavra» frustrada com o texto original do Código.

E, não bastante já o escasso tempo de sua vida, com algumas inquietações −fruto de seu divórcio do Brasil real−, esse Código de 2002 teve ainda de padecer a sofreguidão reformista que não se conteve perante a agitada via de sua alteração, tratando de prematurar mudanças na legislação extravagante das normas codificadas, assim se se deu com a Lei 14.711.

Sem mesmo refrear-se ante a marcha da reforma geral do Código, a Lei 14.711 não poupou logo alterar pontualmente o mesmo Código, como se vê de seu art. 3º.

A primeira questão que se põe não está em admitir que uma ou outra −ou mesmo todas− as mudanças sejam razoáveis. O problema principal está em saber quando se legitima eticamente a mudança das leis. É, pois, um tema de forma, não de matéria: trata-se aí do primeiro que fazer da prudência legislativa.

A lei humana é um ditado da razão, não da mera potestade volitiva. A mudança das leis, desse modo, há de corresponder a um motivo admitido pela mesma razão. E esse motivo é um de dois possíveis: o primeiro, quando haja bastante persuasão de que melhores razões suplantem as que sugeriram antes a instituição da lei que se vai modificar. O segundo motivo é o da mudança das condições societárias a que aplicável a lei.

Em ambas essas situações, a modificação das leis, entretanto, sempre deve ter em vista a necessidade de atender ao bem comum.

Essa finalidade −a necessária consecução do bem comum− é a chave para aferir a legitimidade moral das mudanças legislativas. S.Tomás de Aquino (S.th., I-II, 97, 2) deixou dito que «a mera mudança de uma lei é já em si mesma um prejuízo para o bem comum, porque o costume ajuda muito a observância das leis, ao ponto de que se consideram graves todas as coisas estabelecidas contra os costumes, a despeito de que sejam leis».

Por isso, escreveu o Doutor Comum: «quando se modifica uma lei, diminui-se seu poder coativo na medida em que impede o costume». Daí a recomendação prudencial de que somente se mudem as leis em caso de muito grande e notório proveito (maxima et evidentissima utilitas) ou em caso de extrema necessidade (maxima necessitas).

Por evidente, nada mais oposto a isso do que a fluidez da hiperinflação legislativa que, com sua consequente instabilidade, espalha-se no mundo contemporâneo, fruto, em decisiva medida, do voluntarismo que desterrou a verdade de que a lei é um ditado da razão.

Essa incessante ansiedade reformadora está em busca do paraíso perdido, procurando, com avidez, um futuro feliz que supõe alcançar com normas quase sempre antecipatórias de práticas ainda não experienciadas pela comunidade. É o caminho reverso da bem-sucedida prática do direito romano, e sequer nos faltaria um exemplo a recolher do Antigo Testamento, pois que, a cada ano sabático, na festa dos tabernáculos, liam-se sempre as mesmas palavras da lei que Moisés entregara aos levitas para que eles as guardassem junto à Arca da Aliança.

Por lástima, não é de hoje que temos. entre nós, a experiência do fracasso daquilo que Oliveira Viana chamou de «idealismo utópico», com, em palavras de Joaquim Nabuco, «o manejo de ideias novas», que Nabuco designou «política silogística»: «É uma pura arte de construção no vácuo. A base, são teses, e não fatos; o material, ideias, e não homens; a situação, o mundo, e não o país; os habitantes, as gerações futuras e não as atuais» (Balmaceda, ed. Cia. Editora Nacional e Civilização Brasileira, São Paulo e Rio de Janeiro, 1937, p. 15).

Assim, antes mesmo de saber se algumas alterações de leis são materialmente boas −isto é, se elas se destinam com efetividade ao bem comum−, é preciso sopesar se a própria mudança não é, por si só, uma solução injustificável no balanceamento com o bem que se procura realizar.

Abstraída que seja essa questão geral, e sem querer em nada recusar o aparente acerto material de algumas das novas normas expedidas com a Lei 14.711, não é possível, por exemplo −e para ficarmos em um ponto concreto− ladear o desnecessário «manejo de ideias novas», ou, mais exatamente, o «manejo de novos nomes»−, com que a lei reveste de novidadismo antigos e clássicos conceitos.

Tenha-se em conta, a propósito, que o inciso I do § 9º do art. 9º dessa Lei 14.711 se refere a uma dada «ata notarial de especialização», e, no § 11 do mesmo art. 9º, indica uma «ata notarial de arrematação».

Bem é que mereça aplauso uma previsão legislativa de que se emita título notarial para o registro imobiliário aquisitivo, retomando-se a trilha de que o registro de imóveis não deva ele próprio produzir os títulos de que se incumba inscrever. Esse caminho abandonara-se com a regra do art. 216-A da Lei 6.015, que disciplina o processo extrajudicial de usucapião.

Mas, vejamos um tanto: que coisas são a «ata notarial de especialização» e a «ata notarial de arrematação»?

São apenas novidadismos terminológicos, porque essas duas atas notariais objeto são exatamente as «atas notariais de presença», em que «o notário narra um fato por ele presenciado, sem influir no desenvolvimento do fato» (Leonardo Brandelli, Ata notarial, ed. Safe-Irib, Porto Alegre, 2004, p. 49).

No espectro da doutrina do direito notarial, o problema dessas terminologias localistas, desafeiçoadas das designações doutrinárias clássicas, é que, com isso, corremos o risco de ir tomando mais e mais distância doutrinal do notariado latino. Objetar-se-á, não sem alguma razão, que o problema seria apenas terminológico e não conceptivo, mas não se poderá negar, é já cediço afirmar-se isto: as palavras não são inocentes; enfim, tal o disse o Cardeal Robert Sarah, «devemos ser preciosos na escolha das palavras».

Está bem que não se queira recusar tenha a Lei 14.711 exprimido a relevância das atividades extrajudiciais para a obtenção de maior economia de tempo, esforços e gastos nos processos relativos às garantias de dívidas. Todavia, a prudência sugere sustar a avaliação das inovações legislativas até que verifiquemos os resultados da experiência real da correspondente prática jurídica.