(da série Registros sobre Registros, n. 358)
Des. Ricardo Dip
1.111. Dando continuidade −após algum período de férias− a nossos estudos de direito registral imobiliário, façamos um parêntese na sequência metódica dos itens do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973.
É que parece convir regressar ao item 30 desse mesmo inciso I, empolgando o exame de um tema inovado com a Lei 14.382, de 27 de junho de 2022, tema esse que foi objeto de recentíssimas interessantes reflexões do magistrado paulista Josué Modesto Passos, e que, de minha parte, mereceu a elaboração de dois pequenos artigos encaminhados ao Informativo Notarial e Registral dirigido por Antonio Herance, artigos de que recolho aqui algumas ideias.
Como se sabe, a Lei 14.382 modificou o disposto no referido item 30 do inciso I do art. 167 da Lei de registros públicos, passando a ali prever-se, de maneira expressa, a suscetibilidade de efetivar-se o registro stricto sensu da promessa de permuta de imóveis.
O fato de a lei textualizar essa previsão não elimina um outro fato, qual o de a doutrina já se ter inclinado, antes da mudança legislativa, e com fortes argumentos, em prol da admissibilidade desse registro da promessa de permuta imobiliária.
É bem verdade −reconheça-se− que essa doutrina se remetia especialmente à promessa de permuta imobiliária no âmbito das incorporações imobiliárias, quer dizer, tendo em conta a uma disposição da Lei 4.591/1964 (de 16-12) condicionante da alienação de unidades autônomas condominiais futuras ao prévio registro, no ofício imobiliário competente, do «título de propriedade de terreno, ou de promessa, irrevogável e irretratável, de compra e venda ou de cessão de direitos ou de permuta do qual conste cláusula de imissão na posse do imóvel, não haja estipulações impeditivas de sua alienação em frações ideais e inclua consentimento para demolição e construção, devidamente registrado» (alínea a do art. 32).
Mas o fato é que essa doutrina −articulada, entre outros, por Gilberto Valente da Silva, Carlos Mário da Silva Pereira, Niske Gondo e Nascimento Franco, Ademar Fioranelli, Marcelo Terra, Frederico Henrique Viegas de Lima, Mario Pazutti Mezzari, Ulisses da Silva e José Osório de Azevedo Júnior−, além de sua localização pontual no ambiente da Lei 4.591, podia ainda invocar (foi o que fez expressamente Mario Mezzari) um julgado do STF, o do RE 89.501 (Rel. Min. Rafael Mayer, j. 13-11-1979), que amplificava a admissão do registro da promessa de permuta imobiliária, sem reduzi-la −esta bem indicada observação é do mesmo Mário Mezzari− à troca de coisas presentes. Vale dizer que nada impedia fosse registrado, no ofício predial, a promessa de permuta de imóvel presente por imóvel futuro.
O núcleo da discussão, pelo ângulo registral, estava no permanente conflito entre, de um lado, a afirmação, na doutrina do direito brasileiro, do caráter taxativo dos títulos suscetíveis de registro imobiliário, e, de outro lado, a tese propícia a ser exemplificativo o rol legal desses títulos. Após um período que parecia muito favorável ao reconhecimento da taxatividade do rol dos títulos materiais registráveis (sensu stricto), terminou por predominar o entendimento oposto, desenvolvido em fundamentos teóricos −e retóricos− bastante persuasivos.
A matéria foi agora retomada na aludida meditação de um autorizado estudiosos dos registros, Josué Modesto Passos, juiz paulista que liderou, no biênio 2022-2023, a equipe de correições do extrajudicial na gestão do Des. Fernando Torres Garcia, então Corregedor Geral da Justiça de São Paulo, e, hoje, Presidente do Tribunal de Justiça paulista.
Ao princípio de suas reflexões −por agora apenas publicadas na rede informática−, Josué Passos observou que o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, em julgado de 2016, decidiu não admitir o registro stricto sensu da promessa de permuta imobiliária, «porque – assim o acórdão – é taxativo o rol da Lei 6.015/1973, art. 167, I, e nele não estava previsto esse negócio jurídico». E, com efeito, o voto que conduziu esse julgado −proferido pelo Des. Manoel Pereira Calças (AC 1099413-38.2015)− enunciou: «O rol de atos passíveis de registro perante o Cartório de Registro de Imóveis é taxativamente previsto no artigo 167, I, da lei 6.015/73. Negócio jurídico cuja natureza não se amolde a qualquer das alíneas do inciso em pauta não pode ser registrado»; e ainda: «(…) à míngua de norma legal autorizadora, o registro almejado haveria mesmo de ser declinado».
Indagou então −e ao que parece, retoricamente− Josué Passos: «(…) estava realmente correta a mencionada decisão que, em São Paulo, não admitira o registro stricto sensu da promessa de permuta, porque – assim se fundamentou – o rol do art. 167, I, é taxativo, e não exemplificativo?».
Antes de examinar a resposta a essa pergunta, é preciso salientar que, nada obstante a unanimidade do entendimento nesse aludido julgado do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, era já conhecida a diversa posição doutrinária adotada expressamente por ao menos um dos magistrados partícipes do julgamento. Isso leva a cogitar que o fundamento capital desse acórdão não implicava uma necessária deposição de entendimento discrepante quanto ao motivo nuclear que sugeriu a conclusão do julgado: a matéria posta ali em discussão dizia, diretamente, com o disposto no art. 32 da Lei 4.591/1964, e um dos fundamentos indicados pelo voto de relação foi o de que «(…) o artigo 32, a, da Lei 4591/64 permite promessa de permuta apenas entre incorporador e proprietário, situação distinta da ora versada».
A seguir, aprofunda Josué Passos sua indagação inicial: «(…) a inovação trazida é a demonstração legal de que essa lista é mesmo taxativa (e por isso foi preciso acrescentar as novas hipóteses às alíneas 18 e 30) ou, pelo contrário, a novidade só fez explicitar situações de registro stricto sensu que antes já se poderiam fazer, por estarem implícita no elenco (caso em que, horresco referens, a mencionada decisão não teria seguido a melhor senda)?». E prossegue:
«Essa primeira dificuldade torna-se tanto mais aguda, quanto é certo que a Lei 14.711/2023, art. 5º, parece ter reconhecido, no caso da (a) transmissão do domínio e (b) da constituição de direitos reais limitados, que o rol do art. 167, I, é exemplificativo (ou, pelo menos, típico), ao inserir a alínea 48 (= registro stricto sensu de <outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis>). Deve-se ter em conta, ainda, o Cód. Civil, art. 463, par. único: essa regra prescreve uma inscrição (<registro>) do contrato preliminar no registro competente, o que, se era argumento em favor da admissão do registro stricto sensu da promessa de permuta, também o era para aceitar a inscrição de outras promessas. Ora, se a alteração da alínea 30 vai ao encontro do disposto nesse art. 463, a nova alínea 48, por outro lado, vai em sentido contrário, porque só admite a tipicidade (ou, quem sabe, a exemplaridade) para a transmissão do domínio e a constituição de direitos reais limitados, e a promessa de permuta, se evidentemente não transfere o domínio, tampouco parece constituir um direito real limitado –com o que se chega à dificuldade segunda.»
Essas observações são incisivas, de fato.
Cheguei eu a inclinar-me à dúvida sobre a pertinência até mesmo de preservar-se na Lei 6.015/1973 uma lista de títulos −ao menos, de negócios jurídicos-reais, ainda que não, literalmente, de fatos e atos, e, não menos, de eventualíssimas causas de direito pessoal −, repita-se: uma lista de títulos passíveis de registrarem-se, quando o novo item 48 do inciso I de seu art. 167 consagra o registro stricto sensu de «(outros) negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis».
Se são registráveis os negócios alistados na lei expressamente e mais os outros... são todos, pois; ou seja: os negócios aí referidos são todos os jurídico-reais, não se avistando a necessidade de uma listagem pontual.
Com efeito, se são todos, «bastaria dizer que se registram estritamente os negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis… mais as raríssimas hipóteses de títulos próprios de direitos obrigacionais».