(da série Registros sobre Registros, n. 274)
Des. Ricardo Dip
956. O item 26 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, diz respeito ao registro da arrematação e da adjudicação em hasta pública.
À partida, cabe aplaudir o critério adotado pelo legislador na previsão desse apontado registro, ao remeter-se a suas causas jurídicas −ou seja, aos títulos em sentido material, é dizer: arrematação e adjudicação−, evitando o equívoco, presente em outros passos da Lei 6.015, de enunciar por objeto do registro os títulos em acepção formal (quais seriam, a carta de arrematação e a carta de adjudicação). Ainda recentemente, com a Lei 14.273/2021 (de 23-12) −a chamada “Lei das Ferrovias”−, incorreu-se nesse gênero de equívoco, ao incluir-se o art. 176-A (“O registro de aquisição originária ou de desapropriação amigável ou judicial ocasionará a abertura de matrícula, se não houver, relativa ao imóvel adquirido ou quando atingir, total ou parcialmente, um ou mais imóveis objeto de registro anterior”), nesse artigo aludindo-se ao registro de “carta de adjudicação, em procedimento judicial de desapropriação” (inc. II do § 5º). Mas nesse mesmo erro incide a Lei 6.015 em outros passos: p.ex., ao prever o registro “dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada” (item 3º do inc. I do art. 167); “dos contratos de compromisso de compra e venda de cessão deste e de promessa de cessão, com ou sem cláusula de arrependimento, que tenham por objeto imóveis não loteados e cujo preço tenha sido pago no ato de sua celebração, ou deva sê-lo a prazo, de uma só vez ou em prestações” (item 9º do mesmo inc. I); “das cédulas de crédito, industrial” (item 14); “dos contratos de penhor rural” (item 15); “dos contratos de promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas condominiais e de promessa de permuta” (item 18); “dos contratos de promessa de compra e venda de terrenos loteados” (item 20); “das sentenças declaratórias de usucapião” (item 28), etc.
957. Visitemos brevemente os três conceitos que, ao lado da ideia de registro em sentido estrito, frequentam o texto agora em exame: hasta pública, arrematação e adjudicação.
Nosso vernáculo «hasta» provém de palavra que é assim igualmente escrita e falada no idioma latino: hasta, hastæ, que significa «lança», «dardo», «cetro», mas que também, entre outras acepções, terminou por significar «leilão; venda em hasta pública», porque, tal o disse Torrinha, “a lança era o símbolo da propriedade quiritária e por isso se espetava uma lança no chão, defronte do lugar onde se procedia à venda dos bens dos devedores do tesouro público (…)” (in Dicionário latino-português, 1942, verbete «hasta»). Deste modo, a hasta, entre os romanos, era um símbolo da justa propriedade −iustum dominium−, indicando Gutiérrez-Alviz, que a lança (é dizer, a hasta) se plantava perante os que deveriam presenciar a venda pública de bens móveis ou imóveis (in Diccionario de derecho romano, 1982, verbete «hasta»). Ernout e Meillet, cujas palavras parecem vertidas e ecoadas, em português, por Francisco Torrinha, referem que a lança “est le symbole de la proprieté quiritaire” (in Dictionnaire étymologique de la langue latine, 1932; cita-se aqui pela 4ª ed., de 2001, p. 290).
Pode até parecer que o adjetivo, na expressão «hasta pública» seja rebarbativo, enquanto diga respeito a uma venda que é definidamente pública. É que, com efeito, Antônio Geraldo da Cunha diz que, no idioma português moderno, o vocábulo «hasta» só é usado com o sentido de alienação pública (in Dicionário etimológico Nova Fronteira, 1982, verbete hasta), remanescendo uma palavra acercada −o vocábulo «haste»− para significar «lança». Mas calha ainda cogitar que a analogia entre o sentido, no latim, de «hasta» como lança e o de «hasta» como alienação pública talvez possa situar-se na ideia de que a consumação dessa modalidade de venda dependa sempre de lances (ou lanços), como se recolhe desta muito clara descrição do procedimento da hasta, descrição provinda da douta pena de Moacyr Amaral Santos, ao tempo do Código brasileiro de processo civil de 1939: “O porteiro anuncia, em voz alta, cousa por cousa, por três vezes, a breves intervalos: é o pregão. Entre os pretendentes à aquisição da cousa apregoada, um deles, oralmente, oferece um preço, isto é, faz um lanço. O porteiro repete o lanço por três vezes, a breves intervalos: ‘tenho tanto…; quem dá mais? Outro licitante pode oferecer mais. O porteiro repete o novo lanço, que inutiliza o primeiro, e o repete por três vezes. E, assim seguem-se os lanços, o posterior eliminando o anterior, até que ninguém dê mais. O bater do martelo do porteiro dá a coisa como arrematada pelo maior lanço” (in Direito processual civil, 1970, vol. 3, p. 309; no mesmo sentido, cf. a descrição feita por Lopes da Costa, in Direito processual civil brasileiro, 1947, vol. IV, p. 151-152).
958. Pode, então, rematar-se um conceito de hasta pública: a alienação estatal −por isto mesmo, forçada− de bens mediante licitação pública. Alienação estatal, ou, mais exatamente como é da tradição clássica perfilhada pelo direito brasileiro, uma alienação judicial, porque o ato e o procedimento de alienação se atribuem à atuação do poder judiciário (cf., neste passo, as considerações desfiadas por De Plácido e Silva, no Vocabulário jurídico, 1975, vol. II, verbete «hasta»). É alienação forçada, porque a venda não depende do consentimento do executado, cuja vontade é substituída pela atuação estatal; em suma, a vontade do estado supre a vontade do devedor. Mas uma alienação a que se procede, além disso, mediante lances; assim o disse, a propósito, Serpa Lopes: “A hasta pública é um ato judiciário, precedido da necessária publicidade, realizada segundos as formalidades e os termos prescritos em lei, por força do que se procede à venda de bens de determinadas pessoas em favor do maior ofertante” (in Tratado dos registos públicos, item 603).
Embora o termo complexo «hasta pública» possa encontrar-se no texto de nosso vigente Código Civil (arts. 447, 497 e 1.237), ela não se acha no atual Código de processo civil brasileiro. A hasta pública mencionava-se, entretanto, no Código processual de1939 (arts. 495, 498, 641, 760, 771, § 2º, 973 e 1.000, par. único) e também no Código que o sucedeu, o de 1973 (arts. 724 e 1.173), distinguindo-se, então, por suas espécies, a saber, a praça e o leilão (cf. inc. IV do art. 686 do Código processual de 1973: o edital da hasta mencionará “dia e a hora de realização da praça, se bem imóvel, ou o local, dia e hora de realização do leilão, se bem móvel” −texto da Lei 11.382, de 6-12-2006), cujas diferenças eram três: primeira, o do agente da hasta, que na praça era o porteiro dos auditórios (ou um oficial de justiça), ao passo em que, no leilão, o agente havia de ser um leiloeiro público; segunda, a de seu lugar, pois a praça devia efetuar-se apenas no fórum (§ 2º do mesmo art. 686: “A praça realizar-se-á no átrio do edifício do fórum; o leilão, onde estiverem os bens, ou no lugar designado pelo juiz”); terceira, a de seu objeto (cf. o já referido texto do inc. IV do art. 686), porque mediante a praça se alienavam imóveis (vidē Araken de Assis, Manual da execução, 2007, itens 309 e 316).
Essa distinção de espécies da hasta pública esfumou-se com o Código de processo civil de 2015, como se pode verificar, por brevidade de causa, da só leitura de seu art. 881: “A alienação far-se-á em leilão judicial se não efetivada a adjudicação ou a alienação por iniciativa particular. § 1º - O leilão do bem penhorado será realizado por leiloeiro público.
§ 2º - Ressalvados os casos de alienação a cargo de corretores de bolsa de valores, todos os demais bens serão alienados em leilão público” (confira-se, em endosso, o que dispõe a regra do art. 886 do mesmo Código de 2015).