Registro de divisões (conclusão)

(da série Registros sobre Registros, n. 267) 

                     Des. Ricardo Dip

 

946. O Código brasileiro de processo civil de 1939 tinha um dispositivo −seu art. 515− prevendo, no âmbito da partilha nos processos de sucessão mortis causa, a possibilidade de que qualquer dos herdeiros requeresse, nos mesmos autos do inventário dos bens, quer a divisão geodésica das terras partilhadas, quer, se já feita esta, a demarcação dos quinhões. A demarcação, neste quadro, reduzia-se, tal o observou Carvalho Santos, à “simples cravação de marcos, de acordo com a partilha”, porquanto supunha uma prévia divisão. Limitavam-se, de toda a sorte, esses fins divisório e demarcatório nos termos do par.único do mesmo art. 515, onde se lia: “Nos inventários em que houver incapazes, poderá ser promovido o processo divisório ou demarcação”.

 

Essa previsão correspondia a um acréscimo específico à ação de partilha adotada no direito brasileiro então vigente. pelo qual acréscimo se atribuía à demanda finalidades divisória e, quando o caso, demarcatória, que a referida ação de partilha não ostentava, segundo o disposto no art. 1.778 do Código civil brasileiro de 1916 –“ Os herdeiros em posse dos bens da herança, o cabeça de casal o inventariante são obrigados a trazer ao acervo os frutos, que, desde a abertura da sucessão, perceberam, têm direito ao reembolso das despesas necessárias e úteis, que fizeram, e respondem pelo dano, a que, por dolo, ou culpa, deram causa”. Tem-se, pois, que desse preceito não constavam os fins de divisão geodésica ou de demarcação, que, portanto, passaram a admitir-se, entre nós, no procedimento da demanda de partilha por força da previsão do art. 515 do Código de processo de 1939.

Essa ação de partilha corresponde à actio familiæ erciscundæ do direito romano, mas é preciso considerar que a referida ação romana tinha, da início, caráter divisório corporal do imóvel (ou seja, de divisão física do prédio entre os co-herdeiros: ação de juízo duplo −iudicia duplicia−, porque as partes são demandantes e, ao mesmo tempo, demandados, cujo objetivo “es el de produzir una divisón efectiva de la cosa por atribución de porciones de la cosa que hace el árbitro…”  (Álvaro D’Ors, Derecho privado romano, § 186); só no período justinianeu, entretanto, dispensou-se a necessidade da divisão física do imóvel, o que permite cogitar que a ação de partilha, no direito brasileiro, adotou a possibilidade mais restrita acolhida por Justiniano, qual seja, a de percepção de frutos, sem a divisão geodésica.

Entronca-se o Código civil brasileiro de 2002 na via adotada pelo Código de 1916, lendo-se no art. 2.022 do novo Código: “Os herdeiros em posse dos bens da herança, o cônjuge sobrevivente e o inventariante são obrigados a trazer ao acervo os frutos que perceberam, desde a abertura da sucessão; têm direito ao reembolso das despesas necessárias e úteis que fizeram, e respondem pelo dano a que, por dolo ou culpa, deram causa”.  Vale dizer que a ação é de divisão aritmética, mas não geodésica, de maneira que por essa demanda, tal como definida no Código civil, não se trate de atribuir partes imobiliárias certas e delimitadas aos herdeiros.

Ocorre que desde o advento do Código brasileiro de processo civil de 1973 não há mais a regra que admitia, entre nós, o cúmulo sucessivo de pleito divisório ou, quando o caso, demarcatório às demandas de partilha. Em outros termos, não subsistiu, com o Código de 1973, a regra do antigo art. 515 do Código processual civil de 1939, e não o ressuscitou o vigente Código de 2015.

Em conclusão, não há, no direito brasileiro em vigor, possibilidade de cumular os pedidos de divisão e de demarcação nas demandas de partilha (actio familiæ ercirscundæ).

947. Tal já ficou dito, a ação de divisão, assim se prevê atualmente em nosso ordenamento jurídico, é que tem ao condômino (comproprietário, comunheiro) “para obrigar os demais consortes a estremar os quinhões” (inc. II do art. 569 do Cód.proc.civ. de 2015), podendo essa ação cumular-se com pleito demarcatório, cabendo citar-se “os confinantes e os condôminos” (art. 570), citação essa que, indicativa da necessidade do contraditório e do direito de defesa dos comproprietários e dos confrontantes do imóvel a dividir-se (ou também a demarcar-se), não impede, todavia, que a demarcação e a divisão se realizem mediante escritura pública, com a condição de que sejam “maiores, capazes e concordes todos os interessados” (art. 571). Em tal situação, o resguardo dos direitos dos confinantes vem referido no art. 572 do Código: “Fixados os marcos da linha de demarcação, os confinantes considerar-se-ão terceiros quanto ao processo divisório, ficando-lhes, porém, ressalvado o direito de vindicar os terrenos de que se julguem despojados por invasão das linhas limítrofes constitutivas do perímetro ou de reclamar indenização correspondente ao seu valor” (o destaque não é do original). De novo: “Os confinantes do imóvel dividendo podem demandar a restituição dos terrenos que lhes tenham sido usurpados” (art. 594).

Sendo a finalidade da ação divisória, tal o indica expressamente o Código de processo civil de 2015, “a divisão geodésica do imóvel” (§ 1º do art. 592), preceitua a lei processual que se nomeiem “um ou mais peritos para promover a medição do imóvel e as operações de divisão” (art. 590), nomeação esta que se faculta dispensar nos termos do que dispõe o art. 573 do mesmo Código: “Tratando-se de imóvel georreferenciado, com averbação no registro de imóveis, pode o juiz dispensar a realização de prova pericial”. Isto se deve a que a legitimação tabular abrange a descrição imobiliária, embora possa convir a perícia para a determinação geodésica das partes resultantes da divisão.

O Código refere-se a dois títulos expedidos ao fim do processo da ação de divisão −o auto de divisão e a folha de pagamento: “… o escrivão, em seguida, lavrará o auto de divisão, acompanhado de uma folha de pagamento para cada condômino” (§ 1º do art. 597). Esse auto deve ser assinado pelo juiz da causa e pelo perito, prolatando-se, depois, a sentença homologatória da divisão. Por sua vez, o auto deve mencionar (i) “a confinação e a extensão superficial do imóvel”; (ii) “a classificação das terras com o cálculo das áreas de cada consorte e com a respectiva avaliação ou, quando a homogeneidade das terras não determinar diversidade de valores, a avaliação do imóvel na sua integridade”; (iii) “o valor e a quantidade geométrica que couber a cada condômino, declarando-se as reduções e as compensações resultantes da diversidade de valores das glebas componentes de cada quinhão”; e, por sua vez, a folha de pagamento há de conter (i) “a descrição das linhas divisórias do quinhão, mencionadas as confinantes”; (ii) “a relação das benfeitorias e das culturas do próprio quinhoeiro e das que lhe foram adjudicadas por serem comuns ou mediante compensação”; e (iii) ”a declaração das servidões instituídas, especificados os lugares, a extensão e o modo de exercício” (cf. §§ 3º e 4º do art. 597).

Desta maneira, para possibilitar-se o registro correspondente no ofício imobiliário, deve expedir-se carta de sentença −título adequado ao registro da divisão judicial (inc. IV do art. 221 da Lei 6.015, de 1973)− que se há de compor de cópia do auto de divisão, da folha de pagamento correspondente à parcela predial objeto e da sentença de homologação, com certidão de seu trânsito em julgado.