Registro da promessa de permuta imobiliária (segunda parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 359)

Des. Ricardo Dip

1.112. Regressando ao tema do registro da promessa de permuta imobiliária, dedicamos a exposição anterior ao exame de uma interessante meditação a que, acerca desse assunto −e à vista das Leis 14.382/2022 e 14.711/2022−, lançou-se o Magistrado paulista Josué Modesto Passos.

Esta explanação, por sua vez, trilha de algum modo o que também se indicou para as páginas do boletim Informativo Notarial e Registral dirigido por Antonio Herance.

Pois bem: dando sequência às suas reflexões, Josué Passos pergunta-se sobre o efeito publicitário da admissão do registro stricto sensu da promessa de permuta. E ilustra sua indagação com uma conjectura referente à promessa de compra e venda: «O dono e promitente Tício prometeu a venda ao promissário Caio; essa promessa é registrada. Mévio compra de Tício; essa compra e venda é registrada. Como a promessa de compra e venda, levada a registro, gerara direito real em favor do promissário Caio (CC/2002, arts. 1.417-1.418), não há dúvida de, por força da faculdade de sequela, Caio possa demandar a adjudicação compulsória contra o adquirente Mévio».

Mas, prossegue Josué Passos: «No caso da promessa de permuta, é certo que ela pode ser objeto de execução específica (CC/2002, art. 463, caput), mas, por outro lado, diante do princípio da taxatividade dos direitos reais e da tipicidade do conteúdo deles, é discutível se, a despeito da possibilidade dessa adjudicação compulsória, haja também aí verdadeiro direito real (e não mera pretensão pessoal) e, pois, verdadeira faculdade de sequela».

Ora, de não haver sequela, diz o autor, «cabe a discussão, no plano registral, se o adquirente do imóvel tem ou não direito ao cancelamento de promessa de permuta que estiver registrada, por força da mera aquisição voluntária».

  Isso pode ser mais extenso e grave: «se for admitido o registro stricto sensu de promessas em geral, tomando como ponto de partida a admissão, agora, do registro stricto sensu da promessa de permuta (e, mais amplamente, da ideia de tipicidade ou exemplaridade do rol de fatos jurídicos passíveis de registro): essas outras inscrições gerarão direito real?».

  Daí sua indagação sucessiva: «Podem-se interpretar extensivamente os arts. 1.417-1.418 do Código Civil?».

Que dispõem esses mencionados arts. 1.417 e 1.418 do vigente Código civil brasileiro?

Lê-se no art. 1.417:

«Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel»;

e no art. 1.418:

«O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel».

A questão não é nada simples.

É verdade que se cogitaria, prima facie, de uma extensão analógica das normas −em nosso caso, para expandir a natureza jurídico-real específica da promessa de compra e venda e abranger, dentro da mesma natureza real, a promessa de permuta imobiliária. Isso é bastante problemático num sistema em que se afirmam o numerus clausus dos direitos reais e sua tipologia cerrada.

«São direitos reais», diz o art. 1.225 de nosso atual Código civil, e se bem que a lista codificada desses direitos não exclua outros direitos reais constantes de legislação extravagante do Código, o fato é que alguma vez se supõe (mas isso é uma ingenuidade própria dos bancos escolares) deva o legislador usar sempre a expressão completa «direito real» quando queira instituir algum direito com essa natureza.

Acontece que, tanto se complete a obra legística, a mens legislatoris interessa mais à história legislativa do que propriamente ao exercício da hermenêutica; o que conta efetivamente é a descoberta −a inventio− da mens legis, e essa invenção provém (muitas vezes, para bem ou para mal) da cabeça do intérprete: alguma vez, por lástima, ela surge tal Minerva proveio da cabeça de Júpiter: pronta e acabada, como fruto da intentio lectoris desvinculada da intentio legislatoris.   

Isso quer significar: sem que se recusem a taxatividade e a tipicidade dos direitos reais, já não compete aos legisladores impedir que os intérpretes declarem a natureza jurídico-real de um direito a que, duvidosamente, quisessem os legisladores conceder essa natureza.

Assim, a questão de que nos ocupamos −a de a promessa de permuta imobiliária, uma vez registrada no ofício de imóveis competente, adquirir a natureza de um direito real−, reitere-se: nossa questão pode ver-se por uma diversa perspectiva. Já não de mera expansão analógica de um dictum legal (em nosso caso, dos dicta dos arts. 1.417 e 1.418 do Código civil nacional), mas de uma direta compreensão do dispositivo legal que prevê o registro da promessa de permuta.

Explique-se (espera-se isto) um tanto melhor: ao admitir-se que a promessa de permuta imobiliária seja inscrita no ofício predial, qual efeito se pode estimar implicitado na própria atuação legislativa? Em palavras mais diretas: por que admitir o registro da promessa de permuta, se não fosse para conceder-lhe uma natureza real? Qual a vantagem publicitária que se quereria assinar em prol dos interessados, se essa vantagem não fosse exatamente os atributos próprios da juridicidade real (é dizer, em resumo, sequela e preferência)?

Não serei eu a dizer aqui deva ser necessariamente essa a resposta à indagação de Josué Passos.

O que, sim, assinalo é a que a possibilidade de uma resposta positiva à sua indagação −ou seja, a possibilidade de a promessa de permuta de imóveis constituir, mediante seu registro no ofício imobiliário, um direito real− não depende indispensavelmente de uma extensão analógica (a das normas dos arts. 1.417 e 1.418 do Código civil), porque pode provir da só compreensão da própria norma que previu o registro dessa promessa.

Se essa compreensão recai ou não no campo do que Ivan Élissalde e Michel Villey designaram com o termo herméneutisme (é dizer, um excesso dos intérpretes, uma exageração da intentio lectoris: dela Elissalde falou mesmo em herméneutique pervertie) é exatamente o problema central da discussão.

Prosseguiremos.