(da série Registros sobre Registros, n. 299)
Des. Ricardo Dip
1.019. O item 29 do inciso I do art. 167 da Lei brasileira 6.015, de 1973, prevê o registro stricto sensu «da compra e venda pura e da condicional».
A compra e venda é, em seu gênero, o contrato que, notoriamente, mais se realiza nos tempos atuais. Era já o que dizia Carvalho de Mendonça, referindo-se ao "contrato de todo o momento na vida moderna" (Contratos no direito civil brasileiro, 4.ed., 1967, tomo I, n. 137, p. 312).
Comecemos pelo exame de seu nome.
A designação que se acha na abertura do Título I do livro IV das Ordenações filipinas é a de «compra e venda» −ali se lê: "Das compras e vendas, que se devem fazer por preço certo". O dispositivo reitera a denominação desse contrato: "As compras e vendas se podem fazer, etc.", embora, pouco abaixo, enuncie a lei "para a venda ser valiosa, etc.", adotando o critério de apenas referir um dos membros do termo complexo, o que talvez se explique pela acentuação de um polo no aspecto dinâmico do ajuste. Adiante, por igual, as Ordenações mencionavam a "venda de bens de raiz" e "a venda desfeita" (Título IV do mesmo Livro IV).
O Código civil brasileiro de 1916, ao versar as várias espécies de contratos, possui um capítulo dedicado expressamente à "compra e venda", pacto que designa e define em seu art. 1.112: "Pelo contrato de compra e venda, um dos contraentes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro".
Pela mesma trilha tradicional segue nosso Código civil de 2002, como pode verificar-se da denominação adotada no Capítulo I do Título VI do Livro I da Parte Especial: "da compra e venda", a que sucede o art. 481 que reitera, ipsis litteris, o texto do art. 1.112 do Código civil anterior.
Já era este −«compra e venda»− o nome acolhido em nosso antigo Código do Comércio (Lei 556, de 25-6-1850), como se lia em seu art. 191: "O contrato de compra e venda mercantil é perfeito e acabado logo que o comprador e o vendedor se acordam na coisa, no preço e nas condições; e desde esse momento nenhuma das partes pode arrepender-se sem consentimento da outra, ainda que a coisa se não ache entregue nem o preço pago".
Compra e venda é também a designação que a esse contrato conferem, entre outros, o Código civil português (art. 874º: "Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço", o Código civil argentino (art. 1.323: "Habrá compra y venta cuando una de las partes se obligue a transferir a la otra la propiedad de una cosa, y ésta se obligue a recibirla y a pagar por ella un precio cierto en dinero"), o Código civil espanhol (art. 1.445: "Por el contrato de compra y venta uno de los contratantes se obliga a entregar una cosa determinada y el otro a pagar por ella un precio cierto, en dinero o signo que lo represente").
Todavia, algumas codificações preferem o uso do nome referente a apenas um dos termos dessa relação contratual em exame: p.ex., lê-se no Código civil francês: "La vente est une convention par laquelle l'un s'oblige à livrer une chose, et l'autre à la payer" (art. 1.582); e no Código civil italiano: "La vendita è il contratto che ha per oggetto il trasferimento della proprietà di una cosa o il trasferimento di un altro diritto (…) verso il corrispettivo di un prezzo (…)" (art. 1.470). Também na linha da preferência de somente um dos termos dessa relação obrigacional está o Código civil alemão, que adota, entretanto, o vocábulo Kaufvertrag, contrato de compra (cf. § 454).
Carvalho de Mendonça argumenta em favor da superioridade do uso do termo complexo «compra e venda», não só porque corresponde a sua gênese jurídico romana, mas também porque expressa melhor, a seu ver, "a natureza tipicamente bilateral" desse contrato. Não diversamente, Orlando Gomes, explicando embora que, por simplificação, possa designar-se esse pacto por um dos termos de sua denominação costumeira entre nós, disse que "somente a expressão completa dá perfeita ideia de seu conteúdo" (Contratos, 3.ed., 1971, item 166, p. 217). Um exemplo de simplificação ao designar-se o contrato pode verificar-se com a parte final do art. 191 de nosso antigo Código do Comércio; ali, depois de referir-se expressamente ao contrato de compra e venda, encerrou-se assim o texto legal: "Fica entendido que nas vendas condicionais não se reputa o contrato perfeito senão depois de verificada a condição (…)".
Alguns juristas, faz alguns anos, sugeriram inverter a ordem tradicional do termo «compra e venda», de maneira que, em seu entender, pudesse privilegiar-se a dinâmica da aquisição da propriedade do bem objeto desse contrato. Pareceu-lhes, e nisto tinham razão, que só se poderia adquirir esse bem ao termo derradeiro de uma transferência, ou seja, de um motus inicial do vendedor; daí preferissem dizer «venda e compra» e não mais «compra e venda».
Para logo, no entanto, não parece justificável, sem mais, eleger a aquisição e não a venda como ponto derradeiro do ajuste; se, com efeito, a finalidade desse contrato é a alienação de uma coisa, têm os pactantes intenções correlatas −a de transferir e a de adquirir−, sem que da própria natureza do ajuste possa dizer-se superior uma ou outra dessas intenções. E de não ser isto bastante, calha ainda que esse contrato, entre nós, é apenas um título pelo qual uma pessoa (o vendedor) se obriga a entregar uma coisa a outra pessoa (o comprador), obrigado este, por sua vez, ao pagamento de um preço, sem que, entretanto, haja atualidade do efeito translatício; para o direito brasileiro, esse pacto "não é meio hábil para transmitir a propriedade, limitando-se a gerar a obrigação de transferi-la" (Orlando Gomes); "o contrato [de compra e venda] por si só é inábil a gerar a translação da propriedade…" (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, 5.ed., 1981, vol. III, n. 217, p. 148); ainda, pois, perfeito e acabado esse contrato, criando direitos obrigacionais entre os contratantes, o domínio −disse Carvalho de Mendonça− "não se transfere efetivamente senão pela tradição"; assim também Clóvis Beviláqua, afirmando que a compra e venda dá origem a uma obrigação de dar, sem operar, em nosso direito (referia-se ele ao tempo do Código civil de 1916, mas a lição mantém valor atual), a translação de domínio, translação que "exige a tradição para as coisas móveis e a transcrição para as imóveis" (Código civil dos Estados Unidos do Brasil, edição histórica, 1979, observação ao art. 1.122).