(da série Registros sobre Registros, n. 300)
Des. Ricardo Dip
1.020. O Código civil brasileiro assim versa o contrato de compra venda em seu art. 481: "Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro". É o que já constava do art. 1.122 de nosso Código civil de 1916.
Também no mesmo sentido pode ler-se no Código civil espanhol: "Por el contrato de compra y venta uno de los contratantes se obliga a entregar una cosa determinada y el otro a pagar por ella un precio cierto, en dinero o signo que lo represente" (art. 1.445), e, por igual, no Código civil argentino: "Habrá compra y venta cuando una de las partes se obligue a transferir a la otra la propiedad de una cosa, y ésta se obligue a recibirla y a pagar por ella un precio cierto en dinero" (art. 1.323).
De comum, nessas noções está a indicação do caráter obrigacional do contrato de compra e venda, que não é, em nosso direito vigente (e tampouco o é, em outras muitas ordenações filiadas à tradição do direito romano, tal ocorre na Espanha e na Argentina), um negócio jurídico-real, vale dizer, a compra e venda é um título que tem potência para transferir a propriedade de uma coisa determinada, mas a atualização dessa transferência depende um modo, depende da tradição da coisa.
Este é o fundamento que ampara o conhecido dístico que, no Brasil, faz divulgação do registro de imóveis: "Quem não registra, não é dono", é dizer, quem não registra o título aquisitivo de um imóvel não cumpre o modo formal da tradição imobiliária.
Daí a diferença que se avista, por exemplo, em relação ao conceito que se encontra no art. 874º do Código civil português −"Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço"−, porque, em Portugal, a exemplo do que ocorre, entre outros países, na França e na Itália, a compra e venda transfere de logo a propriedade, é uma transferência solo consensu, de sorte que o direito real correspondente se adquire sem a tradição.
Interessante, a propósito, é a indicação conceitual da compra e venda na doutrina de Ruggero Luzzatto, abrangendo ambas as hipóteses −a da compra e venda puramente obrigacional (a que vigora no Brasil) e a da compra e venda como negócio real. Disse Luzzatto, ao início de sua monografia La compraventa: "A venda é um contrato, em virtude do qual, uma parte (vendedor), transfere ou obriga-se a transferir a propriedade de uma coisa (…), enquanto a outra (comprador) pega ou obriga-se a pagar o preço". Assim, nessa noção ampla, tem-se tanto o contrato de transferência, quanto o de obrigação de transferir a coisa, abarcando as duas espécies de natureza jurídica de que é suscetível, conforme as diferentes legislações particulares, o contrato de compra e venda.
Vejamos como Carvalho de Mendonça trata de conceituar esse ajuste: "Compra e venda é o contrato sinalagmático, consensual e comutativo, em que alguém se obriga a transferir a outrem a propriedade de uma coisa qualquer, mediante a contraprestação de um preço em dinheiro ou em valor equipolente" (Contratos no direito brasileiro, tomo I, item 138, p. 313-314).
Sinalagmático −porque as partes se obrigam de forma recíproca, há um liame jurídico de prestação por uma parte, a do ânimo de transferir uma coisa (vendedor), e de contraprestação por outra parte (comprador), a de entregar-lhe o preço correspondente. Essa reciprocidade −ou seja, o sinalagma− falha em alienações que se digam forçadas (p.ex., as de caráter judicial, em que a vontade do estado substitui a do alienante).
Consensual −porque é suficiente o acordo de vontades entre as partes para que o ajuste se tenha por perfeito e acabado. Diz bem Orlando Gomes: "Não é necessária (…) a entrega da coisa para sua perfeição" (a perfeição do contrato).
A nota de comutatividade no contrato de compra e venda indica uma relativa equivalência entre as prestações recíprocas, que, entretanto, devem ser estabelecidas com certeza bastante e de maneira prévia. Embora a equivalência dessas prestações não se exija de rigor quantitativo estrito, é preciso evitar que a indicação de preço manifestamente irrisório seja um meio de esconder uma doação sob o mero nome de compra e venda, sendo esta última um contrato oneroso e não gratuito como o é, de comum, a doação. Quanto à antecipada certeza das prestações, dizer que o contrato de compra e venda é comutativo significa afirmar que não é aleatório, ou seja, não é dependente de uma indicação futura. Nada impede, contudo, que a compra e venda seja um pacto aleatório, com sua complementação posterior (cf. art. 483 do Código civil brasileiro: "A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório").
É tradicional na doutrina da compra e venda que se apontem por seus elementos essenciais o consentimento, a coisa objeto do contrato e o preço.
A esses elementos, em algumas hipóteses, deve agregar-se o requisito da forma, tal, ad exemplum, o que ocorre com a compra e venda de imóvel de valor superior ao teto previsto no art. 108 do Código civil brasileiro ("Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País"). O art. 104 desse mesmo Código faz referência ao requisito da forma: "A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei", mas não o alude ao versar especificamente sobre a compra e venda (cf. art. 481).
O consentimento é o acordo entre as partes −vendedor e comprador− de transferir o domínio de uma coisa determinada, mediante o pagamento de um preço também determinado (ou, ao menos, determinável). Francesco Degni, em seu La compraventa (item 10), observou que o consentimento deve recair sobre a coisa e o preço, não, entretanto, sobre outros pontos que sejam considerados "efeitos naturais e necessários da compra e venda"; assim, p.ex., não há necessidade de o pacto exprimir que o vendedor consente no registro imobiliário do contrato.
A compra e venda, em geral, aperfeiçoa-se com esse acordo entre as partes (vendedor e comprador), dispondo, a propósito, o Código civil brasileiro: "A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço" (art. 482). Adota-se, pois, nesse dispositivo o princípio da cognição. Em alguns casos, entretanto, esse princípio foi cedendo passo à regência de um misto de aceitação e recepção: "o contrato −diz Luzzatto− aperfeiçoa-se geralmente no momento da chegada da aceitação no endereço do destinatário".